1.8.16

A fachada irritante

Massive Attack ft. Ghostpoet, “Come Near Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=KY0TZQTwwbk
Às vezes, apenas provocação. Talvez, a veleidade de uma boa discussão. Às vezes, quem é provocado não percebe que não há infâmia, ou desagravo. A contestação pode ser fulminante. Aceita-se: se quem é provocado intui que está a ser provocado com o propósito do ultraje, e se não aceitar a inércia como réplica (a sublime indiferença), a réplica sobe de tom e pode deixar o agente provocador num estado de prostração (caso o agente provocador tiver a sensibilidade à flor da pele e se julgar ferido pela réplica devastadora do agente provocado).
Outras vezes, é só mau feitio. Uma irreprimível pulsão para surgir diante dos outros como o agente que semeia irritações avulsas. Na linguagem popular-juvenil, “o gajo que mete nojo”. Uma insubordinação que fermenta por dentro das veias e cauciona os preparos de irritar o próximo. Sempre com uma cautela: o método não pode ter os mais queridos como destinatários, pois estão meticulosamente preservados daquela incontinência de comportamento.
Em condições normais, o agente irritador escolhe irritar gente que lhe apareça irritante pela frente. Dissolve o verniz e deixa à mostra a sua feição de agente irritante. O sucesso da função depende de o agente se transfigurar, sem grande demora, num agente irritante. E de ter deleite em saber-se irritante para alguém que ele considera um pouco mais irritante (sendo, contudo, difícil apurar quem triunfa no concurso geral da irritação do próximo). Há nisto um certo masoquismo em saber-se desagradável aos olhos do outro, diligentemente escolhido para corporizar esta reação pela sua, também, irritante feição. É um jogo de negações duplas, em que a um agente irritante, no exterior de si, se responde com a encenação de um agente, se possível, ainda mais irritante. E é uma perda de tempo, sem dúvida.
Fora das condições normais: a cortesia, o polimento no trato e a simpatia apuram a convivência, ao menos mínima, com o exterior. A irritação, quando ascende à tona, é só uma fachada. Como se ocasionalmente fosse necessário sair de si mesmo e incarnar um ator que é só a sofrível fachada do eu que há em si.

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