19.8.16

A casa centrípeta


Anne Clark, “As Soon As We Get Home”, in https://www.youtube.com/watch?v=ieI2nSjBXIA
A casa como o lugar central do mundo. Onde se tecem os sortilégios que mais ninguém abraça. A casa onde somos refúgio. Onde tudo recomeça de cada vez que franqueamos as portas. Onde as roupas ficam alojadas nos armários e temos entre mãos a nudez especial que é a inteireza em que nos despojamos. A casa cheia de histórias, capaz – se fosse capaz – de as formalizar em páginas e páginas sem fim. A casa onde nos entronizamos. Onde os rostos se transfiguram no suor debitado pelas paredes brancas. No testemunho do ar puro que se respira enquanto temos varandas sobre o mar, jardins que decantam o luar, flores atravessadas nos ramos dantes contrafeitos, pegas em cânticos dóceis que anestesiam a casa. A casa: onde nunca é tarde. Onde tomamos o tempo entre as mãos e sabemos que dele somos tutores. A casa das cadeiras brancas orquestradas na purificação dos sentidos. A casa onde tudo faz sentido. A casa centrípeta, como se fosse a rotunda maior do mundo e as casas restantes, a ela subordinadas, a ela fossem desaguar. Sem admitir consanguinidade, que as casas outras são outras e não conseguem confluir na casa centrípeta. A casa que carrega num vitral límpido os rostos que são a sua feição. Na humildade que é tributária da singularidade da casa. Pode haver casas primas, até uma que é sua gémea; mas são todas diferentes, todas as demais perdidas no restolho da indiferença, casas de que não queremos ter rasto. Não interessam as casas outras quando elas são um pedaço de identificação que importa atalhar. A casa centrípeta, inundada de maresia e de um sol plasmado em suas paredes, tece suas teias ímpares entre os dedos insaciáveis de quem nela se entroniza. Por isso, na casa centrípeta, o lugar mais central do mundo inteiro, nunca é tarde. Nunca é casa a destempo. E uma miríade de casas, de casas outras, procura ter ao menos um telhado que seja sufrágio parecido com a casa centrípeta. Não importa: destoamos pela singularidade, porque no interior da casa habita a luz intensa que é incenso e quimera. Lá fora, só temos uma ideia superficial do pouco que tem utilidade saber.

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