Anne Clark, “As Soon As We
Get Home”, in https://www.youtube.com/watch?v=ieI2nSjBXIA
A casa como o lugar central do mundo. Onde se tecem os
sortilégios que mais ninguém abraça. A casa onde somos refúgio. Onde tudo recomeça
de cada vez que franqueamos as portas. Onde as roupas ficam alojadas nos armários
e temos entre mãos a nudez especial que é a inteireza em que nos despojamos. A casa
cheia de histórias, capaz – se fosse capaz – de as formalizar em páginas e páginas
sem fim. A casa onde nos entronizamos. Onde os rostos se transfiguram no suor
debitado pelas paredes brancas. No testemunho do ar puro que se respira
enquanto temos varandas sobre o mar, jardins que decantam o luar, flores
atravessadas nos ramos dantes contrafeitos, pegas em cânticos dóceis que
anestesiam a casa. A casa: onde nunca é tarde. Onde tomamos o tempo entre as mãos
e sabemos que dele somos tutores. A casa das cadeiras brancas orquestradas na
purificação dos sentidos. A casa onde tudo faz sentido. A casa centrípeta, como
se fosse a rotunda maior do mundo e as casas restantes, a ela subordinadas, a
ela fossem desaguar. Sem admitir consanguinidade, que as casas outras são
outras e não conseguem confluir na casa centrípeta. A casa que carrega num
vitral límpido os rostos que são a sua feição. Na humildade que é tributária da
singularidade da casa. Pode haver casas primas, até uma que é sua gémea; mas são
todas diferentes, todas as demais perdidas no restolho da indiferença, casas de
que não queremos ter rasto. Não interessam as casas outras quando elas são um
pedaço de identificação que importa atalhar. A casa centrípeta, inundada de
maresia e de um sol plasmado em suas paredes, tece suas teias ímpares entre os
dedos insaciáveis de quem nela se entroniza. Por isso, na casa centrípeta, o
lugar mais central do mundo inteiro, nunca é tarde. Nunca é casa a destempo. E
uma miríade de casas, de casas outras, procura ter ao menos um telhado que seja
sufrágio parecido com a casa centrípeta. Não importa: destoamos pela
singularidade, porque no interior da casa habita a luz intensa que é incenso e
quimera. Lá fora, só temos uma ideia superficial do pouco que tem utilidade
saber.
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