Ganso, “Lá Maluco”, in https://www.youtube.com/watch?v=iSb-n0q79Bw
Aprenderam com Tom Waits. (Apesar de não saberem que é
Tom Waits.) Bebiam até se esquecerem que tinham bebido. Quando acordavam da
letargia etílica, sondavam as imediações para encontrar mais bebida. Não tinham
tempo para a ressaca. Caírem inanimados não contava como ressaca. A hibernação
dose sentidos hipotecava as dores corrosivas da digestão da embriaguez.
Bebiam ao desafio. Mistelas inenarráveis, inventando cocktails impensáveis. Shots de bebidas brancas que incluíam
impressionantes doses puras de álcool. Não se lembravam quando fizeram o
tirocínio da bebida. Terá sido na adolescência. Mas se as memórias recentes
depressa se consumiam no vapor do álcool que navegava nas veias, como podiam
esquadrinhar memórias mais distantes? Não se importavam em arranjar resposta
para a interrogação. Era uma perda de tempo. Enquanto fossem às alcáçovas do
tempo desperdiçavam o tempo de agora para beber mais um trago. E os cientistas
sempre advertiram que o consumo de bebidas alcoólicas corrompe os neurónios,
afetando as capacidades cognitivas e as possibilidades da memória. Quanto às
primeiras, os comparsas da bebida não atribuam grande importância. Não
precisavam da cognição para grande coisa. A embriaguez dispensa a inteligência
e embacia o conhecimento. Por maioria de razão, a perda de memória não tinha
cabimento no baú das prioridades.
Havia quem certificasse, juntando uma pose censória, que
eles bebiam para esquecer. Admitia-se: para se esquecerem do tempo que
pertencia ao pretérito. Seria, porventura, porque o outrora não fora pródigo
para os estroinas da bebida. Só que eles não se lembravam se tinha sido assim.
Para não incomodarem a segurança argumentativa, conferiam razão aos censores.
Também não podiam questionar a presciência dos oráculos dos censores, não
fossem estes levados ao abespinhamento. E os censores agradeciam, ufanos e
contentes por acertarem no diagnóstico da vida de alguém (já que, quanto às
vidas próprias, a assertividade devia ser miserável).
Os companheiros da bebida eram uma irmandade. Bebiam até
os corpos se arrastarem pelas cadeiras. Não queriam saber de mais ninguém,
porque mais ninguém entendia o vício. Os censores protestavam contra esta
decadência. Os bêbados não se importunavam. Os censores que dissessem o que
tivessem por prestimoso. Assim como assim, aos decadentes da bebida só
importava a bebida seguinte.
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