10.10.16

De onde vem a manhã


Todd Terje feat. Bryan Ferry, “Johnny & Mary” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=HGaz7Ff0WvM
Entrega-me a manhã dentro de um quadro sem moldura. Para terçarmos as fronteiras do tempo com os dedos a preceito. Deixa o nevoeiro deitar-se sobre a manhã. Na penumbra ciciada nas cortinas da névoa contém-se a magia da manhã. É como se fosse preciso guardar do olhar outro os segredos que, por segredos serem, dispensam testemunhas. As sombras vertidas no nevoeiro da manhã são zeladoras desses segredos. A manhã fica imersa num torpor singular, de onde enxaguamos a matéria larvar que interessa despojar, de onde aquiescemos no frondoso frontispício que nos empresta nome. Enquanto temos manhã, arranjamos as palavras sortilégio. Intuímos. Deixamos os corpos abraçados numa equação que segreda a fórmula de uma liga mais resistente do que qualquer liga metálica. Não perguntamos pela origem da manhã. Não precisamos. Somos suas autoridades superiores, os curadores da manhã. E a ela nos entregamos, enquanto se faz madraça e com ela depositamos a inércia que não é venal. Prometemos ao tempo o tempo inteiro que for mestre na congeminação dos corpos. A janela protege do mundo que está lá fora. Do mundo que for. Pois se às vezes ele se nos oferece generoso, outras vezes é implacável. Por via das dúvidas, convocamos a janela e a sua função. Não arriscamos perder a indulgência que uma das arestas do mundo se apresta a legar; nos interstícios da manhã, somos imperadores da vontade e podemos levá-la ao tirocínio do conhecimento. Quando queremos, abrimos a janela. Deixamos um pedaço do mundo entrar e a manhã agiganta-se no intenso pulsar das veias. Sabemos que o sol não demora, ainda ocultado pelo nevoeiro que persiste há algum tempo. Mesmo que o nevoeiro teime pelo tempo fora, somos entidades maiores para sobre ele adejar e depois beijarmos o sol que queremos. Não há estorvos que se constituam paredes impossíveis. É material que se enquista na inutilidade da matéria confessadamente inútil. Deixamos a manhã decantar as impurezas. As impurezas que esbarram na janela protetora. E seguimos, por todas as manhãs que se depõem nas nossas quentes mãos. Sabendo que a manhã procede de nós, que somos seus curadores.

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