Moderat, “Eating the Hooks”,
in https://www.youtube.com/watch?v=u6ECMXk3JAw
Dar a mão a um braço de rio, sem saber se o rio se deixa
chegar. Porventura, não passa de um sonho. Surreal, o sonho. Pois um cavalo com
pelo de gato persa esbraceja para os lados de um pântano; pudesse sair do sítio,
decerto daria a mão a uma sereia inesperadamente fora de água, mortiça mercê de
desamores. Mas o rio é um cosmos reservado. Entre os humanos, só os pescadores
e o guarda-noturno da fábrica de sal podem reivindicar dele algum conhecimento.
Em estando perto do mar, por vezes o rio sabe a sal – e não é por ação da fábrica
de sal, que foi contemplada com um certificado ISSO 9001:2000, tão impecáveis as
suas credenciais de respeito pelo ambiente. Aliás, o dono da fábrica, homem
donairoso e com queda para aparecer em público como dandy, homem dado a algumas extravagâncias (algumas das quais o
decoro impede revelar), é também dono de um moinho perto da foz do rio. Foi ele
que salvou o moinho da extinção. Recebeu, em conformidade, uma comenda da
confraria dos moinhos e um louvor do presidente da câmara municipal. Dizem as más
línguas, é no moinho reconvertido que o dono da fábrica de sal organiza algumas
das suas extravagâncias. O povo faz correr de boca em boca. Contudo, algum
desconto deve ser dado aos rumores – não é por acaso que os rumores, em regra,
são uma medida inflacionada dos factos, ou uma pura mitomania dos mesmos. Do
autarca se diz, em público e sem temor de censura, que é mentiroso compulsivo. Um
ser desprezível, que não sabe das fronteiras entre meios e fins. Todavia,
quando chegava o dia das eleições, o edil selava triunfo contundente,
aumentando a votação a cada eleição. Se calhar, o povo, que imputa mentiras aos
outros, é o maior dos mentirosos. Ou, talvez, tudo acabe num emaranhado
indecifrável: um numeroso séquito conta mentiras sobre um putativo mentiroso
(que acabou de eleger). Com uma candura desarmante, o filósofo da terra uma vez
escreveu no jornal local: “os mentirosos
anulam-se reciprocamente. Deixam de existir como mentirosos. Deixa de haver
mentirosos.” E ninguém entendeu a retórica do filósofo. Talvez por isso
(por cansaço de ninguém o entender), meses mais tarde o intelectual apareceu
morto nos braços da sereia desenfeitiçada. E o cavalo de abundante penugem
conseguira desembaraçar-se do lodo quase fatal, nadando pelo rio até entroncar
no mar nesse dia furioso.
Sem comentários:
Enviar um comentário