26.10.16

Fictício


Moderat, “Eating the Hooks”, in https://www.youtube.com/watch?v=u6ECMXk3JAw
Dar a mão a um braço de rio, sem saber se o rio se deixa chegar. Porventura, não passa de um sonho. Surreal, o sonho. Pois um cavalo com pelo de gato persa esbraceja para os lados de um pântano; pudesse sair do sítio, decerto daria a mão a uma sereia inesperadamente fora de água, mortiça mercê de desamores. Mas o rio é um cosmos reservado. Entre os humanos, só os pescadores e o guarda-noturno da fábrica de sal podem reivindicar dele algum conhecimento. Em estando perto do mar, por vezes o rio sabe a sal – e não é por ação da fábrica de sal, que foi contemplada com um certificado ISSO 9001:2000, tão impecáveis as suas credenciais de respeito pelo ambiente. Aliás, o dono da fábrica, homem donairoso e com queda para aparecer em público como dandy, homem dado a algumas extravagâncias (algumas das quais o decoro impede revelar), é também dono de um moinho perto da foz do rio. Foi ele que salvou o moinho da extinção. Recebeu, em conformidade, uma comenda da confraria dos moinhos e um louvor do presidente da câmara municipal. Dizem as más línguas, é no moinho reconvertido que o dono da fábrica de sal organiza algumas das suas extravagâncias. O povo faz correr de boca em boca. Contudo, algum desconto deve ser dado aos rumores – não é por acaso que os rumores, em regra, são uma medida inflacionada dos factos, ou uma pura mitomania dos mesmos. Do autarca se diz, em público e sem temor de censura, que é mentiroso compulsivo. Um ser desprezível, que não sabe das fronteiras entre meios e fins. Todavia, quando chegava o dia das eleições, o edil selava triunfo contundente, aumentando a votação a cada eleição. Se calhar, o povo, que imputa mentiras aos outros, é o maior dos mentirosos. Ou, talvez, tudo acabe num emaranhado indecifrável: um numeroso séquito conta mentiras sobre um putativo mentiroso (que acabou de eleger). Com uma candura desarmante, o filósofo da terra uma vez escreveu no jornal local: “os mentirosos anulam-se reciprocamente. Deixam de existir como mentirosos. Deixa de haver mentirosos.” E ninguém entendeu a retórica do filósofo. Talvez por isso (por cansaço de ninguém o entender), meses mais tarde o intelectual apareceu morto nos braços da sereia desenfeitiçada. E o cavalo de abundante penugem conseguira desembaraçar-se do lodo quase fatal, nadando pelo rio até entroncar no mar nesse dia furioso.

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