18.10.16

Este rio que nos percorre

Jamie XX, “Gosh”, in https://www.youtube.com/watch?v=hTGJfRPLe08
Não tem explicação esta força interior que se levanta e povoa um vendaval suave. Não tem explicação o sangue fervente que levita o corpo para as empreitadas impensáveis. Não tem explicação a intensidade do olhar que não decai perante as provações que caem no regaço.
Parece que somos feitos de uma matéria contrafeita. Sem dolosa conotação: contrafeita, porque se transfiguram as caras más que adejam em rostos lavados, translúcidos, claros, puros. Não há sobressaltos que se congeminem como alçapões preparados para nos terem como presas. Não há contrariedades sobrepujadas sobre as sobrancelhas que estimam o horizonte por onde tiramos as medidas. Não tem explicação este arregaçar da pele, ou as mãos cálidas em dias de invernia, ou os olhos secos quando podiam estar marejados, ou o vagar que deixamos ser quando denunciamos o inútil apressamento do tempo. Não há almas que consigam esvaziar o palácio sumptuoso onde temos trono. Não há desejos que se façam vontade contra a vontade que entronizamos.
Este rio que nos percorre inunda-nos com uma força inderrotável. É um rio compulsivo, um rio que soube fraturar as rochas pétreas em duas metades, sulcando o seu leito contra a oposição dos elementos. Provando que a água pode ser macia e que as aparências cuidam do seu desmentido: a água só é macia se teimarem ilusões que não apuram de saber o que se esconde debaixo da fina camada de verniz. O rio caudaloso que nos percorre é de uma lisura temperada e, todavia, arrematou caminho entre a dureza das rochas que foram transformadas em suas margens.
É este rio imparável que traz os sedimentos a tudo. Os arroubos das artes que nos alimentam, a prestidigitação das palavras que ecoam no doce ciciar de um poema, os sentidos que afloram no arrepio da pele, testemunhando a profundidade de que emanam. Tudo o que se congeminar. Só aos espíritos maiores cabe esta claridade inspiradora. Não adianta partir em demanda de um rio assim. É uma feição peculiar que chama o rio. A sua força centrípeta trata do resto.

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