Jamie XX, “Gosh”, in https://www.youtube.com/watch?v=hTGJfRPLe08
Não tem explicação esta força interior que se levanta e povoa
um vendaval suave. Não tem explicação o sangue fervente que levita o corpo para
as empreitadas impensáveis. Não tem explicação a intensidade do olhar que não
decai perante as provações que caem no regaço.
Parece que somos feitos de uma matéria contrafeita. Sem dolosa
conotação: contrafeita, porque se transfiguram as caras más que adejam em
rostos lavados, translúcidos, claros, puros. Não há sobressaltos que se
congeminem como alçapões preparados para nos terem como presas. Não há
contrariedades sobrepujadas sobre as sobrancelhas que estimam o horizonte por
onde tiramos as medidas. Não tem explicação este arregaçar da pele, ou as mãos
cálidas em dias de invernia, ou os olhos secos quando podiam estar marejados,
ou o vagar que deixamos ser quando denunciamos o inútil apressamento do tempo. Não
há almas que consigam esvaziar o palácio sumptuoso onde temos trono. Não há
desejos que se façam vontade contra a vontade que entronizamos.
Este rio que nos percorre inunda-nos com uma força
inderrotável. É um rio compulsivo, um rio que soube fraturar as rochas pétreas
em duas metades, sulcando o seu leito contra a oposição dos elementos. Provando
que a água pode ser macia e que as aparências cuidam do seu desmentido: a água
só é macia se teimarem ilusões que não apuram de saber o que se esconde debaixo
da fina camada de verniz. O rio caudaloso que nos percorre é de uma lisura
temperada e, todavia, arrematou caminho entre a dureza das rochas que foram
transformadas em suas margens.
É este rio imparável que traz os sedimentos a tudo. Os
arroubos das artes que nos alimentam, a prestidigitação das palavras que ecoam
no doce ciciar de um poema, os sentidos que afloram no arrepio da pele,
testemunhando a profundidade de que emanam. Tudo o que se congeminar. Só aos
espíritos maiores cabe esta claridade inspiradora. Não adianta partir em
demanda de um rio assim. É uma feição peculiar que chama o rio. A sua força
centrípeta trata do resto.
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