4.10.16

Contar espingardas

Preoccupations, “Anxiety”, in https://www.youtube.com/watch?v=csMbqrFT1dM
Um choque de titãs: duas bestuntas personagens marcam encontro e trocam condecorações. Em rigor, não trocam nada: atiram ao rosto um do outro as condecorações que ostentam num qualquer domínio, sempre com o propósito de um subir um degrau mais alto e se ufanar da imperial posição.
Os bestuntos contam espingardas. Os países que visitaram, os filmes vistos, as namoradas conquistadas, as proezas desportivas, os troféus de caça, os concertos a que foram, o tempo recorde em que fizeram Porto-Lisboa, as bebedeiras que apanharam (e as façanhas consecutivas). Um deles puxa um assunto. Exibe, com indisfarçável garbo, as medalhas à lapela, sabendo que o outro riposta. Invariavelmente, em resposta, as proezas do rival levam-no a púlpito mais elevado. O primeiro contesta. Haverá sempre um detalhe que faz a diferença, como quem tem de impugnar a façanha reclamada pelo outro por uma conjugação de circunstâncias que impede a comparação estrita das espingardas em contagem.
Se o concurso pueril tivesse um observador exterior, dar-se-ia o caso de o observador se interrogar onde termina a verdade e começa a mentira, ao ser confrontado com o rol de proezas de cada rival esbofeteia no outro. Poder-se-ia dar o caso – e a utilização do verbo no condicional não é um acaso: porventura seria tarefa impossível convencer uma alma a servir de observador em pleito tão inconsequente. Ninguém teria paciência para os jogos florais dos dois bestuntos. Admitindo que houvesse quem por este mister se sacrificasse, depressa começaria a lavrar vários pontos de interrogação que fruíam à medida que as heroicas façanhas se desenovelavam.
Até que, num cenário ainda mais hipotético, fosse possível ligar os bestuntos rivais a um imaginário detetor de mentiras e se consagrasse a mitomania irremediável de ambos. Ficaria uma tarefa por arrematar, em exercício final do curador do pleito inútil: extrair certidão que determinasse qual dos dois leva a palma na arte da mentira e do exagero das proezas. Neste particular concurso, o mais importante de todos, nenhum dos bestuntos gostaria de ser declarado vencedor.

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