Nick Cave & the Bad
Seeds, “Girl in Amber”, in https://www.youtube.com/watch?v=xKq39e7SBOE
Será que um pedaço de nós se extingue a cada morte de
que damos conta?
As pessoas morrem. Nasceram com o fado certo do decesso.
Na morte, celebra-se a tristeza como artefacto da homenagem aos que faleceram. Mas
as mortes não contam por igual. Há mortes que nos doem. Outras que apenas
convocam um registo minimalista de tristeza: manda um módico de humanismo que
ninguém se contente com a morte de um seu semelhante. As mortes que nos são
pungentes talvez tenham o efeito de matarem um pouco de nós. Assim é no tempo
sucessivo ao falecimento, quando mais magoa a ausência. Todavia, somos de uma têmpera
robusta. A morte de outra pessoa, por mais que nos condoa, não leva tudo de nós;
pode levar um pedaço, e apenas por um tempo. Não acabamos com a finitude dos
outros. Nem podemos pretender uma automutilação proporcionada por uma ausência definitiva
que nos seja particularmente dolorosa. Tais mortes metem uma cunha profunda por
dentro da carne, dando a impressão de terem arrancado um pedaço de nós, como se
esse pedaço fosse com a pessoa ida por junto. É um engano. Somos intactos. A consumição
de uma dor não implica que parte de alguém deixe de pertencer aos vivos mercê do
compungimento de uma morte. Nem por metáfora tal predicamento é aceitável.
E se não é aceitável quando jogamos no tabuleiro das
emoções o efeito de uma perda relevante, menos o será quando deitamos os olhos à
necrologia que passa a correr pelas folhas do calendário. Há mortes anónimas, irrelevantes
para a ideia de que morremos um pouco com a morte que existe. E há as mortes tornadas
públicas, de figuras públicas ou de gente anónima que se tornou conhecida pela
maneira como expirou. Por cima de um mínimo que dita a homenagem aos que acabam
de morrer, não é aceitável que se diga que também morremos um pouco com a morte
destas pessoas que nos são distantes. Por este andar, um dia morríamos por ação
da consumição causada pelas mortes de que se diz de nós levarem um quinhão de
cada vez que ocorrem. A menos que tenhamos um capital de vida tão grande que,
mesmo com aquele deperecimento, o filão da vida não se esgote.
Há sempre um predicado otimista a ciciar nas entrelinhas
de uma sombra temerosa. Voltando ao ponto de partida: se for verdade que todas
as mortes nos matam um pouco, quando morrermos vamos cheios de pedaços de todas
as outras pessoas. Morremos mais ricos.
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