22.11.16

Escudo de papel

Hot Chip, “Need You Now”, in https://www.youtube.com/watch?v=lfH5LmhvQQk    
Podia ser maior o orgulho se não exibir um couraçado à prova de bala a proteger a pele toda? Temerário, arremetia contra as intempéries, os sobressaltos, os tresloucados que o desafiavam para pelejas prometidas. Não hesitava, se preciso fosse, em dar o peito às balas (não se cansava de ufanar, com voz em declinação marcial).
Todavia, por dentro estilhaçava-se na mais frágil das fragilidades. Ostentava medalhas imaginárias, proclamando uma valentia que só existia no interior da fortaleza que julgava existir por dentro dele. Mas se olhasse para trás, só tinha para resgatar episódios da aflitiva fragilidade que o embaraçavam (mas só no seu íntimo, sem nunca dar parte de fraco). O escudo de que se gabava, era de papel. Um papiro quebradiço, que se esboroava ao mais pequeno contratempo, ao menor silvo do vento. Um papiro trespassado pelas lágrimas em que se consumia, mas sempre às escondidas. A valentia ostentada não quadrava com a exibição de lágrimas; logo ele, que esbracejava bandeiras marialvas e não se cansava de dizer, em pose militar, que os homens não choram sob pena de androginia duvidosa.
Avançava, sem mostrar medo, para as empreitadas que convocavam o desassombro do corpo. As mesmas que dispensavam um módico de racionalidade – pois uma valentia assim costuma andar nos antípodas da racionalidade serena. Não aprendia com as sinuosas voltas da vida, as sinuosas voltas que já o tinham apanhado à má-fé (e tantas vezes). Não aprendia com uma certa loucura que o hipotecara dessas vezes. De cada vez que o escudo de papel se diluíra nas lágrimas vertidas fizera uma demorada e pungente travessia do deserto.
As coisas repetiam-se, todavia. Não tinha capacidade de aprender com o que já devia ter aprendido. Voltava a ensimesmar num castelo sem paredes, convencido que tinha poder para agarrar o vento entre os dedos e transformá-lo em perfumadas pétalas de uma flor. Resoluto, avançava de caras para as pelejas perfiladas. Voltava tosquiado, arqueado pela insignificância. Acontecia sempre o mesmo depois da derrota humilhante: nos momentos posteriores, regressava, esfarrapado e com o orgulho destruído, mas convencido do contrário. Como se habitasse um mundo paralelo em que tudo acontecia no avesso do acontecido.

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