7.11.16

Fugir


Nick Cave & the Bad Seeds, “Skeleton Tree”, in https://www.youtube.com/watch?v=O7tfTBtpR0E    
I
Fugir dos holofotes que chamam a luz. Pois não têm préstimo as opiniões que venham a terreiro, por mais que alguém haja a considerá-las proveitosas. Duvido que sejam; talvez, apenas, um dilúvio de frases soltas, todavia com um fio condutor (haja ao menos esse predicado), sem originalidade, apenas um repositório de palavras bebidas aqui e ali. Fugir dos holofotes que chamam a luz. Pois a luz pode embaciar a exigível lucidez, ao impor por dentro uma imodéstia que a lucidez não consegue tolerar. E fugir dos holofotes porque assim o impõe a salubridade do anonimato.
II
Fugir dos medos. Dos medos todos. Das cobras (e de répteis em geral), dos aviões que caem, de inesperadamente ir parar à rua despojado de roupas, de grutas escuras e apertadas que não encontram saída e não admitem um recuo, de ficar à beira da apoplexia por causa de uma pastilha elástica entalada na garganta (mesmo não sendo consumidor de pastilhas elásticas), dos pesadelos que nunca são chamados ao sono. Fugir dos medos de agora e dos que vierem a ter palco vindouro, para deixar respirar o pensamento sem os atilhos alinhados pelos medos. Porque os medos são um embaraço à liberdade. De ser como se é. De saber como se seria, não fossem os medos madraços.
III
Dos contratos assinados a tantas mãos. Pois os contratos supõem que quem os celebra não tem confiança mútua. Se chegasse a palavra, não eram necessárias resmas de papeis onde as cláusulas do contrato aparecem em forma de letra, o que é admitido e o que fica cerceado à vontade de quem assina o contrato, as punições preventivamente previstas para o caso de alguém se ter arrependido de celebrar o contrato. Quanto mais sejam as mãos que lacraram o contrato, maior é a probabilidade de o contrato ser uma contrariedade. Fugir dos contratos é como mergulhar as mãos extenuadas num poço de água fresca.  
IV
Dos relâmpagos que emprestam cor ao céu, um ardil espantoso. Pois a constelação de luzes que rasga o céu cativa a admiração. Mas as trovoadas são uma intrusão que ataca o fundo de quem delas é presa. O troar retumbante é como um terramoto que hipoteca os alicerces. Porventura, deixando-os em ruínas já a destempo de se recuar à véspera dos relâmpagos. Fugir dos relâmpagos iridescentes, para enganar os ardis que os outros apalavram e que conduzem ao papel de presa. Pois um espetáculo feérico pode ditar a capitulação, quando as coisas são irremediáveis.

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