2.11.16

Duas semanas

Grizzly Bear, “Yet Again”, in https://www.youtube.com/watch?v=AuG9i5cwGW0
Um anjo negro com largo sorriso disse-lhe que tinha duas semanas para aproveitar o tempo que tinha. Ao início, não entendeu o presságio. Seria, talvez, um desapiedado qualquer espalhando pétalas caducas sobre quem escolhia (eventualmente a dedo, eventualmente ao acaso). O vulto prosseguiu: “não te iludas; o teu tempo está-se a esgotar. Aproveita-o. Faz o que te aprouver nas duas semanas que tens de crédito. Depois, nada mais terás a oportunidade de fazer.” Sem ser evocada a palavra “morte”, intuiu, sem dificuldade, que o vulto inopinado tirara de um oráculo o seu muito curto prazo de validade.
Sem perder tempo – nem sequer apreciar a conformidade do anjo negro e de tão maus presságios – cuidou de esboçar uma lista mental com as tarefas que não poderia deixar de tratar antes de terminarem as duas semanas. Elas foram-se amontoando nos calabouços mentais: resgatar das profundezas da alma a bondade que se perdera; ler o livro que prometera ser o livro da sua vida; ir àquela enseada onde se guardavam dos mais belos momentos que a memória tinha em cartaz; juntar a família toda num jantar, sem dar a entender que era um derradeiro adeus; dedicar algum tempo aos prazeres proibidos, sem perder muito tempo a recuperar das sequelas esperadas; combinar almoços com três amigos especiais (em tempos diferentes); talvez, insultar um político à saída do parlamento; pegar numa maquia considerável e oferecê-la ao primeiro mendigo que aparecesse no caminho; não esperar por promessas cerzidas no íntimo da alma, aproveitando desde já para as arrematar; pegar no automóvel e viajar sem destino até o depósito de gasolina ficar vazio – e depois de deixar o carro abandonado à sua sorte, deixar-se arrastar sozinho para ninguém ser testemunha da sua morte; se preciso fosse, para de todas estas tarefas cuidar com o zelo exigível, não desperdiçar o tempo exíguo com o sono (nem que preciso fosse teimar, quase até à exaustão, em substâncias que adiassem o sono).
E por fim percebeu, ao fim de duas semanas: de tantos exageros, o corpo pagou a conta com uma falência afinal predita pelo anjo negro. Tinha caído num logro.
(Mas tudo não passava de um pesadelo. Apenas.)

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