4.11.16

Pote de ouro – o tempo sem demora


António Variações, “Canção do Engate”, in https://www.youtube.com/watch?v=Rd1FwpFvTnI
Desfeitas as grandes tempestades semeadas pelo vento contumaz, sobra nas mãos um lugar idílico onde tudo é coberto a ouro e o tempo não tem tempo. Um lugar onde os relógios foram desfeitos sem remissão. E o ouro em redor não é se não o incenso perfumado que deixa os sentidos de atalaia. Um catavento permanente, seguindo a peugada dos interesses a que importa dar guarida. Os grãos arroteados de uma seara soalheira convocam férteis divindades furtivas, deixando um êxtase em constante levitação, à espera de ser fechado na boca sedenta. As alcáçovas perdem serventia. As fronteiras, embebidas em seu atavismo, já não servem para fixar limites. Constituem os seus próprios deslimites. Não aguardamos pelo que já não vem. Aguardamos pelas feitorias que são proveito das mãos arquitetas. Proveito da vontade soberana. Olhamos sobre os contrafortes e não esperamos que as ameias estejam nevadas em simulacro de inverno que povoa o tempo congraçado. Não temos de programar nada. Não temos de deitar o olhar através de um relógio que nos sitie. Não temos mapas que redimem as bússolas gastas; temos o que nos interessa: temos um ao outro e os fundos esteios em que somos ancorados. Não há relógios que impendam sobre o tempo e o tempo gravita na fortuna que esbraceja das nossas mãos. Os cais de que precisamos somos nós. Compomos desenhos a tinta da china em papel aveludado e deixamos os perfumes sair através da matéria desenhada. Subimos à cumeada e perdemos o olhar onde ele se perde de vista, só para o chamar de volta e trazer as paisagens angariadas. Dizem que é ócio e que o ócio é pecado em tempos estes assoberbados em intensas jornadas laborais. Mas o que outros dizem não importa. Se é ócio que chamamos a nós, nesta reconfiguração de um tempo que deixa de ser tempo, deixemos a vontade ser suserana. Sejamos nós a falar pelo tempo feito pelas nossas arquitetas mãos. As mesmas mãos que foram artesãs do pote de ouro que guardamos em inconfessável tesouro.

Sem comentários: