António Variações, “Canção do Engate”, in https://www.youtube.com/watch?v=Rd1FwpFvTnI
Desfeitas as
grandes tempestades semeadas pelo vento contumaz, sobra nas mãos um lugar idílico
onde tudo é coberto a ouro e o tempo não tem tempo. Um lugar onde os relógios
foram desfeitos sem remissão. E o ouro em redor não é se não o incenso
perfumado que deixa os sentidos de atalaia. Um catavento permanente, seguindo a
peugada dos interesses a que importa dar guarida. Os grãos arroteados de uma
seara soalheira convocam férteis divindades furtivas, deixando um êxtase em
constante levitação, à espera de ser fechado na boca sedenta. As alcáçovas perdem
serventia. As fronteiras, embebidas em seu atavismo, já não servem para fixar
limites. Constituem os seus próprios deslimites. Não aguardamos pelo que já não
vem. Aguardamos pelas feitorias que são proveito das mãos arquitetas. Proveito da
vontade soberana. Olhamos sobre os contrafortes e não esperamos que as ameias
estejam nevadas em simulacro de inverno que povoa o tempo congraçado. Não temos
de programar nada. Não temos de deitar o olhar através de um relógio que nos
sitie. Não temos mapas que redimem as bússolas gastas; temos o que nos interessa:
temos um ao outro e os fundos esteios em que somos ancorados. Não há relógios
que impendam sobre o tempo e o tempo gravita na fortuna que esbraceja das
nossas mãos. Os cais de que precisamos somos nós. Compomos desenhos a tinta da
china em papel aveludado e deixamos os perfumes sair através da matéria
desenhada. Subimos à cumeada e perdemos o olhar onde ele se perde de vista, só
para o chamar de volta e trazer as paisagens angariadas. Dizem que é ócio e que
o ócio é pecado em tempos estes assoberbados em intensas jornadas laborais. Mas
o que outros dizem não importa. Se é ócio que chamamos a nós, nesta
reconfiguração de um tempo que deixa de ser tempo, deixemos a vontade ser
suserana. Sejamos nós a falar pelo tempo feito pelas nossas arquitetas mãos. As
mesmas mãos que foram artesãs do pote de ouro que guardamos em inconfessável
tesouro.
Sem comentários:
Enviar um comentário