The Cult, “Rain”, in https://www.youtube.com/watch?v=RD5b_0QB0wI
As velas arrumadas mal o vento ameaça num sobressalto
sem cautela. Não se quer perder o que custou a arregimentar. Ao primeiro sinal
das areias em desengonçada coreografia, contra a sua vontade (que o seu lugar é
junto ao chão, servindo de espelho vivaz quando abraçam a cintilação do sol), o
vento promete uma tempestade outonal já avisada no boletim meteorológico.
Os pescadores recolhem as embarcações em porto seguro. As
aves já pressagiam a fúria anunciada e ensaiam voos urgentes que as hão de
levar a refúgios zelosos, onde nem a chuva nem os despojos do vento terão
entrada. Os sem-abrigo são convidados pela polícia para se recolherem aos túneis
do metro. Não se sabe se a polícia conseguiu falar com todos, pois não é certo o
seu cadastro. Há comerciantes que se precatam, pregando tábuas na parte
inferior das portas e janelas; faz-se constar que um dilúvio fará companhia ao
vento e que este será seu adjuvante no efeito devastador.
Pôs-se um estado de sítio, com os meteorologistas a
hastearem o alerta vermelho. Suspeita-se que no dia seguinte não haverá comércio,
nem escolas, nem escritórios ou fábricas em função. As pessoas são convidadas a
não saírem à rua assim que se fizer madrugada. Só os bombeiros e os polícias
estão de pré-aviso. Podem ser precisos para acautelar “ocorrências” (como manda
a retórica convencional da imprensa). Desconfia-se que será a pior tempestade
dos últimos anos. O outono a despejar a sua ira sobre a terra que adormeceu na
sombra dos proventos estivais. Há quem não vá dormir durante a noite:
comerciantes temendo por danos avultados, os autarcas a acompanharem os
estragos, jornalistas fazendo o “ponto da situação”, meteorologistas de olho
afiado sobre as imagens de satélite e os dados mais recentes e os modelos matemáticos,
sabendo que não conseguem meter uma trela na tempestade.
Ninguém sabe dos mendigos não inventariados. Ninguém
sabe onde vão parar os cães e os gatos vadios. Na amálgama da tempestade, alguém
terá a função de fazer a escrita contabilística, os seus despojos. A menos que
os meteorologistas tenham errado por excesso e a tempestade tenha passado ao
lado (como é frequente acontecer, para tristeza dos estudiosos da meteorologia).
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