Nicolas Jaar, “El Bandido”,
in https://www.youtube.com/watch?v=VWR41_H-zy4
Que cabalística era esta de um mundo tão iníquo e com tanta
gente indiferente às iniquidades que agrediam os sentimentos genuínos? Podia
ser uma cabala de demónios que se insinuam entre gente comum, eles próprios
disfarçados de gente comum. Como era possível poucos notarem as injustiças que
devolviam à miséria numerosa gente sem que ninguém levantasse um dedo (primeiro,
para denunciar tanta miséria; ato contínuo, para meter mãos à obra e mover
vontades diligentes a favor da correção das iniquidades)?
As injustiças indispunham. Tiravam-lhe o sono: eram
horas e horas de insónias povoadas pelas imagens de excruciante miséria em que
tropeçava todos os dias quando percorria as ruas da cidade. Já não aguentava
mais. Tinha de desencravar a inércia que dava caução à indiferença. Tinha de
ser Zorro numa terra de ignóbeis egoístas apenas interessados em proverem o
sustento individual, incapazes de desviarem o olhar um palmo ao lado para
despromoverem a pobreza militante a aprazado antagonismo das almas sãs. Vestiria
a capa de um Zorro que haveria de começar por convencer os endinheirados a
darem o seu quinhão para corrigir as gritantes diferenças entre os que muito
tinham e os que medravam na carência de quase tudo. Convencê-los-ia a bem. Ou a
mal, se preciso fosse. Começaria por tentar a assertividade dos argumentos
lineares. Caso os endinheirados teimassem no autismo, usaria a força bruta.
Trataria de empregar as credenciais de um Zorro inamovível
à indiferença dos privilegiados. Cuidaria, depois, de distribuir o pecúlio
pelos necessitados. Sabendo que se deitaria num sono apaziguado e que não seria
incomodado pelas possíveis dores de consciência consecutivas aos saques sobre
os endinheirados relutantes em serem convencidos pela sua retórica assertiva. Acordaria
de barriga cheia, sabendo que no dia pretérito tinha tirado algumas pessoas da
miséria (pelo menos temporariamente). Sem medo de outras consequências:
convencido dos poderes sobrenaturais, inerentes à indumentária de Zorro que
metia no corpo, não se sobressaltava com as milícias contratadas pelos
privilegiados com o propósito de lhe darem caça e de protegerem os haveres que
não se dispunham a partilhar.
Um dia, alguém lhe perguntou: és Zorro porque
espontaneamente te insurges contra as misérias que consomem a dignidade dos
miseráveis, ou apenas porque as iniquidades te locupletavam o sono?
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