Hope
Sandoval & The Warm Inventions feat. Kurt Vile, “Let Me Get There”, in https://www.youtube.com/watch?v=oxQzGymwCWI
Há sonhos em que fermenta a raiz quadrada do madrigalesco.
Como se nas cidades populosas houvesse campos de madressilva em cada quarteirão.
Como se aspirássemos a que o mundo mudasse e fossem banidos as feições feias,
os ângulos miseráveis, os atores sem escrúpulos e os lados imperfeitos que nos
agridem. Para só haver flores a povoar o céu. O mar a embelezar os quadros
mentais, o mar purificado e purificador. Para que a inocência das crianças
contaminasse o pensamento dos adultos e não houvesse caminhos da maldade por
onde campear. Para que não houvesse tempo para deixarmos as costuras da
felicidade em suspensa equação, a nós cabendo preencher o seu interior com matéria
sumarenta e digna do termo. Para que não fôssemos traídos pela sensatez. Para que
a existência transitasse pelas páginas de um livro onde apenas poemas sublimes
subissem através da caneta. Como se não fosse jamais possível adestrar a
desconfiança, a boçalidade, o trato ríspido, a dilação dos imperativos, o
fingimento como pedra-de-toque do trato com os outros, a aleivosia do
oportunismo.
E os sonhos levitam-se, uns atrás dos outros, mesmo sem
ser preciso mergulhar num sono que os traga a tiracolo. Para intuir a razão dos
outros sem o estorvo de a considerar anómala (mesmo que juremos a pés juntos não
pisar tais caminhos). Para congeminar um princípio geral de confiança de que são
credores os outros. Para perceber que há coisas resguardadas no último reduto
de cada indivíduo sem incomodar o esteio da convivência em grupo. Para admitir
que sem um princípio geral de reciprocidade não saberemos ser quem somos nem respeitaremos
os demais.
Os sonhos férteis, porém, não quadram com o mundo possível.
Com o seu enraizar. Nem com poderosos efeitos de contágio que ensinam que é
mais fácil a inércia dos maus instintos do que promover o seu contrário. Em
contramão com os sonhos chega-nos a espessura do real, o seu odor pestífero: o
potencial tremendo de tudo o que seja destruição em exata medida do seu tatear
fácil, pois um instante chega para desfazer tudo o que levou tanto tempo a criar.
Os sonhos não podem ser desestimados. Por mais que
esbarrem na configuração plúmbea do mundo em que somos atores. Por mais que os
caminhos que derrotam as ilusões dos sonhos insistam em berrar ao pensamento
que as ilusões tropeçam no ardil da semântica. Que fruam as vezes em que nos
amordaçamos ao doce ardil de um sonho, ao poço sem fundo onde medram os sonhos.
Nem que seja por metódica dissidência do mundo que nos agride.
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