30.12.16

Advertência


Dead Can Dance, “Opium”, in https://www.youtube.com/watch?v=6BpWoldEx4o
Toma esta advertência em teu bornal: não te atrevas a instalar o medo, ou a semear sobressaltos avulsos sem pré-aviso, ou a transfigurar paisagens belas em tempestades com finais impróprios. Não te atrevas a caldear os sonhos com matéria fúngica que vem dos tamancos de velhacos sem remédio. Não te atrevas a cercear a existência a quem nos seja querido (adia essa proscrição por mais um ano – e outro atrás de outro, se não for pedir muito). Não te atrevas a locupletar os sonhos que emprestam novas bainhas à fazenda que temos entre mãos. Não te atrevas a ser madraço quando queremos que sejas engenhoso, nem metas pressa ao tempo quando queremos que as coisas tenham arrastamento indolente. Não te atrevas a escrever como teu prévio epitáfio uma página de que te venhas a envergonhar nos sopesos posteriores. Não te atrevas a ser acorde dissonante numa sinfonia já desastrada. Atreve-te, pois, a meter as margens da noite no sítio a que pertencem. Atreve-te a irradiar os dias soalheiros quando houver préstimo em serem soalheiros, sem te esqueceres que a chuva precisa de um lugar. Atreve-te a chamar as pessoas à colação quando achares que elas estão fora de um lugar ciente. Atreve-te a desembaraçar os sisudos de seus esgares correspondentes, oferece-lhes um módico de sorriso para saberem que a vida tem valimento. Atreve-te a desafiar os sacerdotes da seriedade a aprenderem a escarnecer de si mesmos. Atreve-te a combinar os pensamentos antagónicos, sem que na divergência medrem suscetibilidades. Atreve-te a deixar correr o tempo no seu tempo. Atreve-te a inspirar os artistas a serem prolixos na qualidade do que produzem. Atreve-te a deixar fluir os rios em seus leitos, sem teres a ousadia de os desviar do percurso inaugurado pela natureza. E não te atrevas, por fim, a desembainhar espadas que se terçam em violentas coreografias que envergonham os quadros que, a preceito, se tingem de negros panos. Atreve-te, pois, a seres um ano (novo) vestido por panos garridos, ungido por ares revigorantes, trespassado por poemas sublimes, soado pelas músicas que apetecer, visitado pelas paisagens mais bucólicas que conseguires descobrir. Atreve-te a desconfigurar os medos e a capitular os pesadelos. Atreve-te a seres pleno (e só com as tergiversações que forem estritamente necessárias).

29.12.16

Reta final

Hot Chip, “Huarache Lights”, in https://www.youtube.com/watch?v=9S0ONyRctyE
Um duende, aparentemente insignificante, mete medo ao gigante. Parece contrariar as leis da física, a chamada “ordem natural das coisas”. Como pode uma criatura liliputiana amedrontar o poderoso hércules?
Pode o primeiro exibir um viço incontestável, mostrando o sangue na guelra contra os imponderáveis sortidos, convivendo com a loucura própria dos destemidos. O segundo, quase adormecido, atado a uma decadência irremediável, exangue de forças, apenas contemplativo dos tempos em que fermentou toda a sua glória. O duende ostenta uma energia inquebrantável. Sabe que os tempos vindouros serão o seu altar proeminente. O gigante sente no dorso o murmúrio dos anjos finais. Sabe que já não tem armas para terçar contra o fado impiedoso que o espera. Capitula, aos poucos.
Entre os dois, uma transição. O duende à espera do tempo certo para se entronizar senhor de um império até agora tomado pelo adamastor. Sabe que não o pode fazer antes do tempo. Não é provável uma reação intempestiva do gigante, pretendendo defender a coutada que foi sua – que ainda é sua; o gigante já não conserva forças necessárias para esse fim. É uma questão de respeito. Uma sucessão aprazada no tempo, à espera que o tempo seja certo para se soerguer no firmamento. O duende, apesar de jovem e ainda inconsequente, tem a lucidez para intuir que ninguém lhe perdoaria se ocupasse o trono antes do tempo. Antes que o gigante definhe até o fio da respiração se evaporar na exiguidade de uma janela já encerrada.
O duende espera pela sua vez. Não tem que se impacientar. Não tem de deitar tudo a perder. Deve-se entregar ao imperativo tirocínio que o prepara para as funções que o esperam. Enquanto espera que o gigante senescente expie de uma vez por todas, no seu tempo que é de reta final. Na casa da partida, pacientemente à espera da altura certa para se lançar na pista prometida, o duende que preste homenagem final ao gigante prostrado. Dele foi o tempo de ser imperador. Dele virão os rudimentos que o duende não pode desprezar. A passagem de testemunho não é uma rutura.