26.12.16

Sapatos largos

Weyes Blood, “Seven Words”, in https://www.youtube.com/watch?v=nWvmGwKiOe0
Elogiam a sensatez. Elogiam a calma que impede de cair num precipício, caso a decisão fosse esculpida pelo viés da precipitação. Elogiam a fleuma. São tantos os elogios que nem sabe qual é o seu cabimento. Não convive bem com elogios; prefere a humildade, prefere passar na multidão sem ninguém dar conta.
Às vezes dizem: “és uma referência”. Protesta: “estás enganado(a)”. Protesta com veemência contra um lugar que não é seu. É como se habitasse dentro de uns sapatos que não são do seu tamanho, numa desmedida por excesso. Sente que há lugar a mais para ser seu domínio. Se tivesse dúvidas sobre o seu devido lugar, tirava-as depressa: ao sentir um domínio tão largo ser seu por determinação alheia, não consegue dar conta do tanto espaço que convoca a sua lucidez. Não tem mãos a medir para tanto lugar que determinaram ser seu domínio. Fica exausto ao querer dar conta do recado. Assim como assim, a responsabilidade é exigente e não deve deixar ficar mal os que depositaram confiança na sua sensatez. É um sacrifício.
Os sapatos largos que são sua alçada vieram a despropósito. Desconfia que as determinações exteriores se fundamentam na necessidade de haver quem procure cais para um fundear seguro. Só não percebe por que foi escolhido para a função. Não se revê em tais predicados. Sempre se teve como a pior pessoa para emprestar conselhos a quem os viesse pedir. As suas veias incensadas clamam por alguém que conseguisse ser seu esteio nos conselhos que a errância, a incorrigível errância, determina. O mal é que sempre conseguiu ocultar a errância.
Em perfeita antítese, dele fizeram um paradigma. Revolve-se por dentro, luta contra este fado ditado de fora. Mas protesta em silêncio. Consome-se na exaustão que o exercício do papel exige. Os sapatos estão cada vez mais largos. Sente-se afogar por não dar conta de tanto espaço que se exige ser sua coutada. Mergulhado num pesadelo profundo, sente-se a vociferar “não queiram que seja um deus num lugar em que não há deus”.

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