Dead Can Dance, “Opium”, in
https://www.youtube.com/watch?v=6BpWoldEx4o
Toma esta advertência em teu bornal: não te atrevas a
instalar o medo, ou a semear sobressaltos avulsos sem pré-aviso, ou a
transfigurar paisagens belas em tempestades com finais impróprios. Não te
atrevas a caldear os sonhos com matéria fúngica que vem dos tamancos de
velhacos sem remédio. Não te atrevas a cercear a existência a quem nos seja
querido (adia essa proscrição por mais um ano – e outro atrás de outro, se não
for pedir muito). Não te atrevas a locupletar os sonhos que emprestam novas
bainhas à fazenda que temos entre mãos. Não te atrevas a ser madraço quando
queremos que sejas engenhoso, nem metas pressa ao tempo quando queremos que as
coisas tenham arrastamento indolente. Não te atrevas a escrever como teu prévio
epitáfio uma página de que te venhas a envergonhar nos sopesos posteriores. Não
te atrevas a ser acorde dissonante numa sinfonia já desastrada. Atreve-te,
pois, a meter as margens da noite no sítio a que pertencem. Atreve-te a
irradiar os dias soalheiros quando houver préstimo em serem soalheiros, sem te
esqueceres que a chuva precisa de um lugar. Atreve-te a chamar as pessoas à
colação quando achares que elas estão fora de um lugar ciente. Atreve-te a
desembaraçar os sisudos de seus esgares correspondentes, oferece-lhes um módico
de sorriso para saberem que a vida tem valimento. Atreve-te a desafiar os
sacerdotes da seriedade a aprenderem a escarnecer de si mesmos. Atreve-te a
combinar os pensamentos antagónicos, sem que na divergência medrem suscetibilidades.
Atreve-te a deixar correr o tempo no seu tempo. Atreve-te a inspirar os
artistas a serem prolixos na qualidade do que produzem. Atreve-te a deixar
fluir os rios em seus leitos, sem teres a ousadia de os desviar do percurso inaugurado
pela natureza. E não te atrevas, por fim, a desembainhar espadas que se terçam
em violentas coreografias que envergonham os quadros que, a preceito, se tingem
de negros panos. Atreve-te, pois, a seres um ano (novo) vestido por panos
garridos, ungido por ares revigorantes, trespassado por poemas sublimes, soado
pelas músicas que apetecer, visitado pelas paisagens mais bucólicas que
conseguires descobrir. Atreve-te a desconfigurar os medos e a capitular os
pesadelos. Atreve-te a seres pleno (e só com as tergiversações que forem
estritamente necessárias).
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