O ator crepuscular

Tricky, “Black Steel”, in https://www.youtube.com/watch?v=9ZJTM03UByU

No dia pardo: o ator, já de si crepuscular, enfastia-se. Devia ser o contrário. O dia pardo combina com os humores do ator crepuscular. Assobia uma melancolia que é sua especialidade. As nuvens baixas ensaiam um teto que parece esmagar-se contra a cabeça das pessoas. Dizimando o pensamento lúcido – algo que o ator crepuscular não aprecia. Mais uma razão para o ator crepuscular esboçar um sorriso perante as particularidades atmosféricas do dia. Mas ele não consegue.

Dele se diz vestir um luto imorredoiro. Não se sabe a causa. E não se sabe se é a roupa sempre negra que quadra com o rosto fechado e esquivo a um breve sorriso, se é o rosto que convoca a indumentária plúmbea. O ator crepuscular não dispõe ninguém. Ao pé dele, não há animação, humor, cantorias, algazarra. Talvez por isso a solidão seja sua marca distintiva. Vive sozinho. Almoça e janta sozinho. E quando alguém o desafia para a socialização, tem o hábito de recusar o convite. “Não” é a sua palavra favorita (menos quando um “não” se sobrepõe a outro “não”).

Parece que nem o dia pardacento tem o condão de animar o ator crepuscular. Assim como assim, dir-se-ia ser um dia a preceito do seu feitio. Se lhe perguntassem – e se ele estivesse inclinado para dar uma resposta –, diria que toda a gente está enganada a seu respeito. Que ele é uma pessoa vivaça, com um profundo gosto pela vida e pelos seus prazeres, com uma desafiante curiosidade pelas coisas desconhecidas da vida, uma pessoa virada para as obras com o cunho dos homens e da natureza, um defensor das artes e da conversa com os semelhantes. Se insistissem que ele vive sitiado pela solidão, contra-argumentaria que a solidão é um estado de alma que depende de quem nela deita o olhar.

Se dúvidas persistissem sobre a têmpera do ator crepuscular, uma ida ao teatro dissipava-as. Ele consegue encarnar personagens exultantes e que transbordam alegria, personagens com sorriso militante que contagia os demais. Consegue ser o crepitar de uma fogueira latente, sem deixar adormecer as cinzas que a mantêm acesa. O ator crepuscular é um ator – e está tudo dito. Ninguém sabe estimar que homem se esconde atrás do ator crepuscular.