Booka Shade, “Lost High”,
in https://www.youtube.com/watch?v=SNWU48RB6jY
No domínio da cabalística: tudo era pensado através dos
números. Das suas combinações e dos significados representados pelas combinações
dos números. Havia números a evitar: o sete, por corporizar a sétima palavra do
alfabeto, “g”, que logo o remetia para a palavra “gasto” – e por trazer à colação
a extinção da validade, o que logo remetia para o passamento.
Tinha medo de sair à rua caso o primeiro número que
viesse aos olhos, durante as leituras matinais à frente do pequeno-almoço,
fosse “um”. Este número não é o primeiro dos algarismos; a sua formação matemática
obrigava a recordar que esse papel é desempenhado pelo zero. O primeiro
algarismo é um ardil – e daí que outra palavra começada por “a” fosse com ele
conotada: “azar”.
Considerava-se um predestinado, pois uma análise mais
fina da sua data de nascimento, melhor, da combinação de algarismos
representativos da sua data de nascimento, assim o indicava: um de janeiro de mil
novecentos e cinquenta e três. O método relevante para a significação destes números
compunha-se do somatório dos números integrantes da data e do seu resultado pelo
método “noves-fora”. Para a data de nascimento: noves-fora-dois. Algarismo que
se enlaça com a letra “b”, à qual fazia corresponder a palavra “bondade”. Assim
se convencia que a cabalística desenhada também podia ter um lado positivo (até
porque, num laivo de contradição que, todavia, não admitia, o facto de ter
nascido no primeiro dia do ano não era entendido como um sinal de azar, tal
como fazia constar ser a significação do número um).
A data da formatura dera-lhe indicações sobre as
orientações políticas: dezanove de julho de mil novecentos e setenta e sete. Pelo
mesmo método operativo, a soma dos algarismos componentes dá noves-fora-cinco. Cinco
encontra semelhante na letra “e”. Daí a incorrigível militância esquerdista e a
convicção da superioridade moral das suas convicções. (O que nunca lhe foi
explicado, é que o habitual racionalismo de esquerda não quadra com significações
cabalísticas e, de um certo modo, supersticiosas.)
Falta saber, para ter um saldo final do seu percurso,
que data ficará selada como a do seu decesso. É a incógnita que não consegue
resolver, por mais cálculos que ensaie. Alguém cuidará deste seu epitáfio. Deixará,
para o efeito, instruções precisas seladas em testamento. (E esperava, com inegável
mortificação interior, que soubessem interpretar o código operativo.)
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