28.12.16

Números do avesso

Booka Shade, “Lost High”, in https://www.youtube.com/watch?v=SNWU48RB6jY
No domínio da cabalística: tudo era pensado através dos números. Das suas combinações e dos significados representados pelas combinações dos números. Havia números a evitar: o sete, por corporizar a sétima palavra do alfabeto, “g”, que logo o remetia para a palavra “gasto” – e por trazer à colação a extinção da validade, o que logo remetia para o passamento.
Tinha medo de sair à rua caso o primeiro número que viesse aos olhos, durante as leituras matinais à frente do pequeno-almoço, fosse “um”. Este número não é o primeiro dos algarismos; a sua formação matemática obrigava a recordar que esse papel é desempenhado pelo zero. O primeiro algarismo é um ardil – e daí que outra palavra começada por “a” fosse com ele conotada: “azar”.
Considerava-se um predestinado, pois uma análise mais fina da sua data de nascimento, melhor, da combinação de algarismos representativos da sua data de nascimento, assim o indicava: um de janeiro de mil novecentos e cinquenta e três. O método relevante para a significação destes números compunha-se do somatório dos números integrantes da data e do seu resultado pelo método “noves-fora”. Para a data de nascimento: noves-fora-dois. Algarismo que se enlaça com a letra “b”, à qual fazia corresponder a palavra “bondade”. Assim se convencia que a cabalística desenhada também podia ter um lado positivo (até porque, num laivo de contradição que, todavia, não admitia, o facto de ter nascido no primeiro dia do ano não era entendido como um sinal de azar, tal como fazia constar ser a significação do número um).
A data da formatura dera-lhe indicações sobre as orientações políticas: dezanove de julho de mil novecentos e setenta e sete. Pelo mesmo método operativo, a soma dos algarismos componentes dá noves-fora-cinco. Cinco encontra semelhante na letra “e”. Daí a incorrigível militância esquerdista e a convicção da superioridade moral das suas convicções. (O que nunca lhe foi explicado, é que o habitual racionalismo de esquerda não quadra com significações cabalísticas e, de um certo modo, supersticiosas.)
Falta saber, para ter um saldo final do seu percurso, que data ficará selada como a do seu decesso. É a incógnita que não consegue resolver, por mais cálculos que ensaie. Alguém cuidará deste seu epitáfio. Deixará, para o efeito, instruções precisas seladas em testamento. (E esperava, com inegável mortificação interior, que soubessem interpretar o código operativo.)

Sem comentários: