27.12.16

Porta da entrada


Front 242, “Headhunter”, in https://www.youtube.com/watch?v=m1cRGVaJF7Y
Na base de um vulcão, com as chaves escondidas no bolso, a caminho de uma fortuna inaudita. Sem contar a ninguém. Guardando só para si o segredo que ciciava para não se esquecer das coordenadas. Poder-se-ia dizer que tinha um tesouro nas mãos, ou quase. Só faltava encontrar a porta da entrada e decifrar os lamentos de um coro de sacerdotes que estariam (de acordo com indicações superiores) preparados para tornar difícil a tarefa.
No mapa constavam as instruções (mais do que um caminho acertado para chegar à fortuna). Era uma sequência que devia ser respeitada; falhasse um passo que fosse e já não tinha remédio. Com a agravante de ter de memorizar a numerosa lista de empreitadas que se seguiam umas às outras, numa ordem predeterminada. Tinha prazo para arranjar uma mnemónica. Foi quando se lembrou de como elogiara os atores que conseguem decorar trechos demorados de peças de teatro. Haveriam de guardar um segredo para conseguirem memorizar partes tão extensas de texto. Ele também teria de o tentar. Oxalá valesse a pena o tesouro prometido. Já que tinha sido acometido pela maleita hodierna que deixa as pessoas sitiadas pelos bens materiais, levaria até ao fim a caça ao tesouro.
Tempo depois, julgando-se capaz para recordar os passos encadeados uns nos outros, lançou-se à aventura. Assim como assim, não havia castigo cominado caso a memória falhasse e não cumprisse escrupulosamente a lista de tarefas antes de ficar no beiral da fortuna prometida. Não falhou uma só palavra. Deu consigo num umbral luxuoso, quase gongórico. De acordo com a lista de instruções, era a porta de entrada para o tesouro. Apareceu – como previsto – o coro de sacerdotes que cantava seus pesares. Os sacerdotes puseram-se à frente da porta da entrada. Dos sacerdotes se esperava que travassem a entrada de estranhos na porta da entrada. Não teve de se debater com os sacerdotes. Ao mínimo toque, os sacerdotes senescentes dissolviam-se em finas partículas incolores.
Franqueou a porta da entrada. Via o vulcão por dentro, o magma efervescente a contorcer-se em gorjeios medonhos. Estava um calor insuportável. Nas paredes inclinadas do vulcão, pequenos operários devidamente equipados pareciam trabalhar na reparação da vereda que ia sendo causticada pela combinação de vapores tóxicos e de calor. Olhou em redor. Não viu mais instruções. Puxou pela memória, evocando uma a uma as instruções que constavam da mnemónica. Podia ser que nas entrelinhas encontrasse mais pistas para o tesouro. Foi em vão.
Ficou a contemplar a paisagem sulfurosa por dentro do vulcão. Afinal, talvez fosse esse o tesouro: nenhum homem se podia orgulhar de ter estado por dentro de um vulcão.

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