Nick
Cave & The Bad Seeds, “The Mercy Seat”, in https://www.youtube.com/watch?v=Ahr4KFl79WI
Acontecia todos os dias: ele parava no semáforo à saída
de casa, quando as pessoas ainda estão estremunhadas e contra a manhã que se levantou
cedo. À frente dos olhos, um anúncio a um motel reparava o sono sobrante. O anúncio
tinha a fotografia de uma mulher lúbrica, como se o anúncio representasse o
convite a atividades carnais ilegítimas.
Acontecia todos os dias: a fama passava de boca em boca:
atividades extraconjugais, adultérios em marcha, os apenas gente pecaminosa que
alugava um quarto de motel por umas horas para deixar falar o demónio da líbido.
Ele incomodava-se só de supor o que ia dentro dos quartos de motel. Eram os
seus pesadelos sem indulto. Não era preciso ter publicidade a entrar pelos
olhos dentro, empurrando os incorrigíveis pecadores para mais uma rodada de
pecado, para bem do negócio dos motéis e a bem dos prazeres carnais que não
conseguiam reprimir.
Não acontecia todos os dias: o notável testa-de-ferro da
moral cristã não copulava. Era assaltado por um bloqueio. O cheiro a sacristia
inundava-o. Na catequese, lá na aldeia que o vira nascer, os patrocinadores da
boa moral educaram-no no pudor, na castração dos instintos carnais. “O bom homem não fornicará para além do
estritamente necessário” – era aforismo apalavrado pelo catequista de
serviço, que evocava sempre que o demónio das tentações aflorava. (Obediente,
nunca lhe foi dado interrogar o significado de “para além do estritamente necessário”; podia a interrogação ser
tida por topete, pelo que asfixiou as dúvidas existenciais sobre a quantificação
do limiar da aceitabilidade do sexo. E nunca lhe ocorreu perguntar se as
mulheres estavam isentas da limitação.)
O bom servo da moral cristã, na preparação para a cruzada
pela reposição dos costumes, fez os trabalhos de casa: num estudo de mercado, encontrou
dados sobre a clientela dos motéis. Havia muita clientela – ou não fosse o ramo
de negócio tão próspero –, mas era variada. Eram clientes assíduos, mas de
visitação algo espaçada. Seria sinal de reposição dos costumes? Não ficou
convencido. O problema era a numerosa clientela que não resistia ao apelo dos motéis
e pecava, pecava a eito.
Tempos depois, já com brigada formada, atacou os motéis em
dias espaçados. À bomba. Não se importou com as vidas ceifadas; assim como
assim, já estavam em pecado na altura dos ataques. O que o bom servo da moral não
contou era o prazer perverso que sentia ao saber das bombas detonadas e dos
coitos assim interrompidos. O homem tinha um antagonismo com o sexo. A defesa da
moral (de sacristia) era só uma fachada.
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