P. J. Harvey, “The Ministry
of Defence” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=Xtz2q1Rfgbk
“Os defeitos de que te acusas são o reverso
das qualidades de que te orgulhas”, Agostinho da Silva, in “Espólio”.
A maldita condição humana: não podemos ambicionar a
perfeição. Um rol de defeitos sobressalta a existência, quando não se toleram pessoais
fragilidades. O sono embotado, os atos arrependidos, as decisões que oxalá não
tivessem sido tomadas, palavras que não deviam ter assomado à boca – eis um rol
de adversidades que perturbam dias inteiros.
Por dever de exigência interior, tudo devia ser
perfeito. Logo chegam os emissários das limitações da condição humana,
advertindo que a perfeição não é possível. Podiam, ao menos, dizê-lo com indulgência,
recordando que somos profundamente eivados de defeitos e que os defeitos são
condição inata da humanidade. Mas não é desse modo que a advertência é feita. Acentuam
a ignomínia dos defeitos. Como se fosse preciso recordar que não nos é possível
achegar ao beiral da perfeição, tantos os defeitos que se confundem com
pecadilhos de que somos acusados.
Ato contínuo, embebe-se o espírito negativo que campeia
e fazemos nossos os maus predicamentos da alma de que nos acusam: somos os
primeiros – e os piores – juízes de nós mesmos. Não aceitamos os defeitos. Tecemos,
com intensa gravidade, o libelo acusatório que é braço armado dos defeitos que hipotecam
o sono. Parece má consciência. Há imperfeições superiores à vontade de quem as
traz a tiracolo, como há imperfeições que desabrocham (e depois prosperam) com
os atos volitivos dos seus fautores. Talvez o primeiro caso não chegue a encher
um parágrafo nas páginas negras que submetem a consciência a um julgamento inexorável.
Talvez o segundo seja caso para encher páginas a eito, debruando-as com a
penumbra que, nem ela, consegue ocultar a vergonha.
No meio de tantas páginas, as qualidades podem permanecer
num limbo, anestesiadas numa hibernação duradoura. Esquecemo-nos que também
somos matéria elogiável. Esquecemo-nos que uma singela qualidade pode chegar
para aplacar as dores causadas pelo reconhecimento de todos os demais contratempos
que transtornam o interior. No sargaço das páginas adulteradas pelos
sentimentos confusos, a páginas tantas já não é possível saber se nos acusamos
das qualidades (desse modo) inúteis e se nos orgulhamos dos defeitos incorrigíveis,
que, por o serem, não são achados como tal.
Sem comentários:
Enviar um comentário