21.12.16

O parentesco do inverno

Wand, “Growing Up Boys”, in https://www.youtube.com/watch?v=eXxFaoi3Ub8
Esperava pela chuva tardia. Esperava à chuva. Sem medo da chuva, sentindo que era uma bênção. A roupa molhada, junto ao corpo, escorria abundantes pedaços da chuva abundante. Não havia lamentos. Queria sentir a chuva copiosa a esmagar-se no rosto, o corpo inundado e já misturado com a roupa ensopada. Queria sentir o inverno.
O facto de ser noite parecia sobressaltar os espíritos madraços. Dizia-se que as piores tempestades são à noite, quando o olhar não consegue ver se não a penumbra ainda por cima embaciada pelo furor da chuva acompanhada do vento intempestivo. Dizem muito más coisas sobre o inverno. Não é por acaso que os conhecedores, e ao mesmo tempo detratores do inverno, invocam os animais que hibernam como metáfora da fuga aos apuros do inverno. E há quem que se recolha num refúgio seguro, protegendo-se contra o frio que enregela, à espera que o tempo se veja livre do inverno sem comiseração – adiando o que puder ser adiado. Há, ainda, os lugares-comuns que enxameiem a semântica com a expressão “mau tempo” como sinal identitário do inverno.
Porventura, haverá um fundo de verdade na fustigação do inverno audaz: as tempestades conseguem destruir o que levou anos a fio a erguer. O potencial de destruição torna-as um alvo dos sacerdotes das convenções, sem remédio atiradas para o bornal onde habitam as coisas de má têmpera. Mas as tempestades não são um exclusivo do inverno. As outras estações também as conhecem. Em sendo fenómenos excecionais, têm um potencial de destruição assassino, superior ao das useiras tempestades de inverno. Talvez os oponentes do inverno se queixem da míngua de luz natural que vem com o inverno. Não se queixarão do mesmo os amantes da noite, pois têm à mercê um largo estendal de penumbra que faz os seus gostos.
Se as coisas fossem perfeitas, e se as vontades pudessem ser atendidas por uma divindade resgatada ao umbral das pessoas comuns, podiam os adversários do inverno ser expatriados temporariamente para os trópicos enquanto fosse inverno. Ou podiam as mesmas divindades reconfigurar o inverno, pegar nas suas costuras e dar-lhe nova forma – menos passional, menos excessiva, com menos penumbra à mistura, com maior graciosidade. Mercê de tamanha adulteração, seria como se já tivesse sido extinto o inverno.

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