5.12.16

O sul que ficava a norte do norte

Car Seat Headrest, “Vincent”, in https://www.youtube.com/watch?v=bEsItsZphwQ
Terçavam-se as armas em constante reboliço interior. Os olhos seguiam o desenho das nuvens, empurradas por um vento nada gentil que se exilava a norte, sinal da invernia com prazo prometido. Podia estar vestido com roupa frugal para o frio que fazia, mas não se intimidava. Os olhos insistentes esquadrinhavam as costas das nuvens, procurando saber se havia estimativas confiáveis sobre o modo visível que estava para chegar.
Eram dias de intempérie que quadravam com os sobressaltos que faziam ferver as veias. As nuvens dobravam-se sobre o dorso umas das outras à medida que tomavam conta do céu dantes claro. Meteu na cabeça, naquele dia, que haveria de derrotar a serrania que tinha a intempérie medonha por companhia. Nem os mais destemidos ousavam meter-se ao caminho em condições daquelas. Nem isso o demovia.
Os montes estavam impossíveis. Não via um palmo à sua frente. As nuvens tomaram leito entre os alcantilados declives dos montes. Estava um vento terrível. Às vezes, era difícil mover as pernas contra o muro de vento. Não capitulou, a teimosia por mastro que ostentava uma brava bandeira da coragem – ao menos que fosse para ter um módico de orgulho em si mesmo, desaprovando o timorato que se sentira por tanto tempo. A montanha parecia não parar de subir; ou era apenas o muro de vento que oferecia travão às pernas, fazendo crer que escalava uma montanha de apreciável inclinação.
Quando atingiu o cume, descansou uns minutos. Estava exausto. Encharcado até aos ossos. (De nada valera o equipamento a preceito que, tinham assegurado na loja, era impermeável até nas profundezas de um rio.) Continuava sem ver um metro à frente dos olhos. As bátegas de chuva empurradas pelo vento impiedoso agrediam o que sobrava do rosto à mostra. Tirou as luvas e sentiu as mãos ensopadas e macilentas. Agora não podia voltar para trás. Tinha de prosseguir. Tinha de derrotar a descida da montanha pela outra ladeira. Diziam ser a mais difícil de vencer. Não tinha escolha. Se ficasse na cumeada à espera que a tempestade acabasse, seria vítima da montanha. Tinha de se meter pela montanha abaixo, mesmo que a noite não tardasse. Tinha que derrotar o cansaço que o prostrava. Ou era a morte pela certa.
Umas horas depois, como se tivesse passado nos interstícios de um demorado pesadelo, encontrou uma casa-abrigo junto ao rio caudaloso. A noite acabara de tomar o seu lugar no tempo. A bússola estava avariada; não sabia onde estava. Não interessava. A perseverança (os mais próximos dir-lhe-iam, em tom de reprovação, ser apenas de uma demencial teimosia) derrotou a montanha em condições que ninguém havia tomado entre mãos.
Para celebrar a proeza, batizou aquele lugar (o lugar onde se sentira resgatado da cruenta montanha) o sul ao norte do próprio norte.  

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