29.9.17

Se me é permitida a divergência

LCD Soundsystem, “Tonite” (live at Later…With Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=2KFIOfNCq4Q    
Se me é permitida a divergência: não convoco aos mares as almas desaproveitadas, por falta de tempo, pela ausente paciência com os propositados descuidados de quem se oferece carente à atenção dos outros. (Nunca apreciei o Calimero.)
Se me é permitida a divergência: vou ao fundo de um poço sem fundo, se preciso for, para arrancar da medula um vestígio de pensamento, um vestígio que seja, nem que se soerga na forma de amontoado ininteligível, pois a serventia do caos é arrotear as fráguas que depois fazem tenção de ungir os apreciados instantes que merecem demora, dando-lhe o húmus substancial.
Se me é permitida a divergência: corro contra as nuvens plúmbeas de onde se pressentem os punhais afiados, e continuo a correr com o amparo dos corrimões gastos, por onde não têm cabimento os furtivos caçadores de almas que não pedem meças aos escrúpulos.
Se me é permitida a divergência: deixo a decisão da representação para os outros, os mais sapientes, os mais transversalmente conhecedores, os seguidores acríticos das seitas a concurso, os que desalmadamente vociferam discursos que têm tanto de soberba como de frívola observação dos objetos relevantes, e depois pedem (por intermédio da palavra febril, inflamada, mundana) aplauso ao séquito, deixo a decisão principalmente aos possuidores do bastão benzido pela moralidade (já que em mim é tamanha a sua ausência).
Se me é permitida a divergência: cicio palavras quiméricas sem o medo da indevida hermenêutica, nem de cais rompidos pela maré dos preconceitos estultos.
Se me é permitida a divergência: pergunto as perguntas todas, não vá uma curva traiçoeira do tempo aplacá-lo a meu desfavor e as ausentes perguntas ficam em irresolúvel débito.
Se me é permitida a divergência: mergulho na cozinha e nos preparos da gastronomia, experimento e invento, desviando o olhar de canhestros paredes-meias com a indigente palavra que não se entretece em raciocínio. (Não vá o raciocínio ficar ofendido com a analogia.)
Se me é permitida a divergência: deixo ao tempo futuro o legado do silêncio.
Se me é permitida a divergência: quando aceitarem a minha divergência, parto em demanda da divergência de mim mesmo.

28.9.17

À consideração

Anarchicks, “Black Box”, in https://www.youtube.com/watch?v=9c2FA2vdT2w    
Os truques assanhados dos pederastas da alma, cientes da ingenuidade dos outros sem darem conta da sua estultícia.
Os sonos sitiados em poços sem fundo, convocando as trevas implacáveis.
As palavras sem rosto, apoderadas pelos flancos da virtude a que se não conhece tutor.
As rodas do tempo sem préstimo.
A resplandecência de ideias ímpares, na exata véspera de serem recusadas por resilientes curadores da normalidade.
Os contrafortes da beleza, em antinomia com os risíveis peraltas sem leito para repousar.
As manhas da gastronomia, em perfeito deleite sacrificial, em que tudo que se intui é a simulação emoldurada por descrições exuberantes que parecem exercícios de literatura.
Os gatos vadios, puros, indomáveis.
Os corpos aformoseados, mesmo que sejam destemperos da inanidade interior.
A lua inteira escondida na penumbra das nuvens, a lua que também se envergonha.
O marasmo: tem mesmo serventia?
Os olhos raiados pelo cansaço, ou olhos tomados pela embriaguez do conhecimento?
A narrativa não adjetivada, a modéstia de processos, biombos onde tudo se desnuda e ninguém se precata com lentes temperadas pelo preconceito.
A rebeldia sem remédio, coldre que apascenta a redenção.
Os objetivos cuidados pelo valor inestimável da afeição.
O amor. Improrrogável. O amor configurado pelos silêncios que dispensam palavras, pelo amplexo dos corpos que se entregam, pelo prazer sem freios.
Os poemas esteio. Lidos e relidos e, todavia, fautores de erupções cutâneas de bom quilate.  
As horas nunca tardias nos lugares onde os atrasos não contam.
O espectro maldito dos palhaços-fantasma, no sorriso ilusório que esconde facas com gumes à espera de serem traspassadas no primeiro incauto.
As estátuas sem significado.
O esquecimento. O providencial e o espontâneo.
As laias reunidas em torpes exercícios de insubmissão.
Os heróis que não há.
O risível. Caução de incontinente contentamento.
As paisagens de mel, os odores sortilégio, o mar afoito, a noite sem medo.
O teatro que mete o pensamento em trabalhos – árduos, apenas; ou trabalhos em pleno sentido da palavra.
Os cemitérios sem serventia.
Os cabazes de palavras arroteadas contra a matéria indocumentada da alma.
As crianças abraçadas à ingenuidade.
A materialização dos devaneios.
A provável loucura improvável.
À consideração: prosa ou poesia?

27.9.17

Turbulência

LCD Soundsystem, “How Do You Sleep?”, in https://www.youtube.com/watch?v=8zGIItxDTfs    
Os copos arrastados na mesa olhavam pelo fundo vítreo a nesga de mar que se entreabria na fusão com o entardecer. O voo desregulado das aves emprestava desenhos intempestivos ao céu. O ruído nos bastidores, sincopado na combustão dos sons díspares, era uma manta de retalhos. Pusera-se um vento que contrastava com a quietude. Os pássaros deixaram de povoar o palco contemplado pelos olhos. O mar desarranjou-se e as ondas subiram nos tamancos, deixando em seu sopé vestígios de espuma – as ondas despenteadas pelo vento em contrapé.
Dentro dos copos, a bebida quase esgotada. Pediu outra. “Sim, pode ser o mesmo” – disparou com indiferença para o rapaz que o veio servir à mesa. Ela incomodou-se. Não tolerava o ar impante com que as pessoas se dirigem a quem as serve nos cafés, nos restaurantes, nas pastelarias, nos bares, por todos os lugares. Na sua maneira de ver, quem praticava esta enquistada forma de empáfia julgava-se ungido por um complexo de superioridade. De outro modo, só a má-educação explicava o despautério. Em mais demorada análise, teorizava: desbastada a camada de verniz, fica à mostra o contrário do complexo de superioridade que adestra a má-educação de gente malparidamente sobranceira. Limitavam-se a excretar um complexo de inferioridade seletivamente escondido dos olhares alheios – não fosse decapada a matriz dos simplórios pergaminhos que se simulavam na pose altiva. Ela interiorizava outro pensamento, a colar-se na periferia do anteriormente exposto: não há mal nos pobres pergaminhos a que se convencionou pespegar rótulos depreciativos. O mal vem da imperatividade dos pergaminhos. Ninguém tem de mostrar nada. A ninguém devia ser imposto o dever de estar sob os auspícios do escrutínio alheio.
A bebida veio, enfim. Ao que percebeu da reação dele, veio tarde e a má horas e não fora confecionada segundo os diligentes preceitos dos aclamados barman. Ele protestou com maus modos: “ó rapaz, diga-me se esta é uma bebida que se apresente. Diga lá ao perito que se esmere e traga-me outra feita como deve ser.” Ela já não podia conter a explosão que germinava do mais fundo. Matraqueou os dedos na mesa transparente e não se conteve:
- Podias ser mais simpático. Pobre rapaz. Tem ele lá culpa da tua má disposição...
O incómodo foi devolvido em dobro:
- Podes ir embora quando quiseres. Assim não te incomodo. Ninguém te prende aqui.
- Vejo que a mudança do vento te indispôs. Não há nada a fazer. Há quem não cresça com a idade. Ou então, é o passado mal-arrumado que te dispõe para os maus fígados. Vê se pensas na vida.
-  Era o que mais faltava. Quem és tu para me apontares o dedo?
- Ninguém. A partir deste momento, sou ninguém. Não te ires, que de mim perdes caução para a ira. E para o resto, já agora.
Ela levantou-se e partiu dali para longe. Desligou o telemóvel. Por dias a fio. Não queria suportar as variações de humor, incertas, autênticos volte-face sem aviso prévio. Ele já não se lembrava do episódio quando, estremunhado e com uma terrível cefaleia, acordou no dia seguinte. Não deu importância ao telemóvel desligado – “deve estar avariado, ou ela esqueceu-se de o recarregar”, anotava mentalmente, com algum desprezo à mistura. O vento tinha mudado. A nortada impenitente costurou outras bainhas ao pensamento. Tinha a certeza que a sua ausência estava a causar dano. Quando deu conta, não sabia quanto tempo tinha passado, ela estava em pose de sedução e a sedução não lhe era destinada.