Radiohead, “Lift”, in https://www.youtube.com/watch?v=QBGaO89cBMI
Deixemos que os objetos falem por si. Os objetos
que ostensivamente são carregados a tiracolo dos seus usuários. É uma comunicação
inteira, própria, através dos objetos. Não protestem os usuários de serem suas
vidas atiradas à praça pública, espiolhadas sem dó, numa gramática insurgente
que irmana numeroso (talvez: maioritário) exército mundano.
Podem contrapor: e quem tem a ver com as
escolhas dos outros? Quem tem a ver com os sinais exteriorizados através da
pertença de objetos que são em público mostrados? O mal é termos os olhos distraídos
nos outros. Eu digo que é sinal corpóreo de uma doença contemporânea: somos
educados, desde os bancos da escola e pela vida fora, que a existência só faz
sentido em conjunto. Como pertença a um núcleo coletivo – chamemos-lhe “sociedade”,
para conforto dos diligentes patrocinadores da doutrina. Quem arriscar dissidência
é apostrofado, carregando o opróbrio de sociopatia (assim entendido por quem
dita tal sentença; não pelo acusado, indiferente ao juízo alheio). Tamanha é a
dependência dos outros, num, dir-se-ia, desarmante desprendimento de si que o
leva a privilegiar o outro, quase se esquecendo de si mesmo, que os radares estão
todos alinhados para o exterior do ser.
Todos acabam presas e caçadores uns dos outros.
Os papeis confundindo-se frequentemente. A certa altura, já nem sabem se são
presas ou caçadores – a definição dos papeis mergulhada na incerteza, os próprios
papeis sitiados pela volatilidade. É nestes preparos que os objetos que
comunicam uma personalidade não podem ter a pretensão da sobriedade. Eles são
profundamente indiscretos. Duplamente indiscretos. Por um lado, expõem os seus
usuários. Que depressam se constituem em usurários do olhar alheio, indiscretamente
pousado nos objetos que ora congraçam inveja, ora projetam uma malícia mal disfarçada.
Por outro lado, a comunicação escrupulosa dos objetos indiscretos tem destinatários:
os olhares, também eles indiscretos, em que esbarram os objetos indiscretos. Desafiados,
esses olhares são invadidos e culminam o processo com um pronunciamento, na
impossibilidade de atirarem um lampejo de indiferença aos objetos indiscretos.
Não admira que no terreiro onde campeiam os
objetos indiscretos prospere um princípio geral de hostilidade. A indiscrição
dos objetos cauciona esse princípio. Trata-se de uma invasão de território
alheio. Os atingidos pelos indiscretos objetos, em vez de se dedicarem ao ensimesmar
mais sadio, reagem com desconforto, às vezes com a virulência própria de quem
discorda dos objetos indiscretos ou de quem por eles exterioriza indisfarçável inveja.
Oxalá soubéssemos, por uma vez que fosse, em metódica repristinação, mergulhar
no pulsar das veias interiores, e o olhar não se compadecesse com as provocações
exteriores.
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