14.9.17

Objetos indiscretos

Radiohead, “Lift”, in https://www.youtube.com/watch?v=QBGaO89cBMI    
Deixemos que os objetos falem por si. Os objetos que ostensivamente são carregados a tiracolo dos seus usuários. É uma comunicação inteira, própria, através dos objetos. Não protestem os usuários de serem suas vidas atiradas à praça pública, espiolhadas sem dó, numa gramática insurgente que irmana numeroso (talvez: maioritário) exército mundano.
Podem contrapor: e quem tem a ver com as escolhas dos outros? Quem tem a ver com os sinais exteriorizados através da pertença de objetos que são em público mostrados? O mal é termos os olhos distraídos nos outros. Eu digo que é sinal corpóreo de uma doença contemporânea: somos educados, desde os bancos da escola e pela vida fora, que a existência só faz sentido em conjunto. Como pertença a um núcleo coletivo – chamemos-lhe “sociedade”, para conforto dos diligentes patrocinadores da doutrina. Quem arriscar dissidência é apostrofado, carregando o opróbrio de sociopatia (assim entendido por quem dita tal sentença; não pelo acusado, indiferente ao juízo alheio). Tamanha é a dependência dos outros, num, dir-se-ia, desarmante desprendimento de si que o leva a privilegiar o outro, quase se esquecendo de si mesmo, que os radares estão todos alinhados para o exterior do ser.
Todos acabam presas e caçadores uns dos outros. Os papeis confundindo-se frequentemente. A certa altura, já nem sabem se são presas ou caçadores – a definição dos papeis mergulhada na incerteza, os próprios papeis sitiados pela volatilidade. É nestes preparos que os objetos que comunicam uma personalidade não podem ter a pretensão da sobriedade. Eles são profundamente indiscretos. Duplamente indiscretos. Por um lado, expõem os seus usuários. Que depressam se constituem em usurários do olhar alheio, indiscretamente pousado nos objetos que ora congraçam inveja, ora projetam uma malícia mal disfarçada. Por outro lado, a comunicação escrupulosa dos objetos indiscretos tem destinatários: os olhares, também eles indiscretos, em que esbarram os objetos indiscretos. Desafiados, esses olhares são invadidos e culminam o processo com um pronunciamento, na impossibilidade de atirarem um lampejo de indiferença aos objetos indiscretos.
Não admira que no terreiro onde campeiam os objetos indiscretos prospere um princípio geral de hostilidade. A indiscrição dos objetos cauciona esse princípio. Trata-se de uma invasão de território alheio. Os atingidos pelos indiscretos objetos, em vez de se dedicarem ao ensimesmar mais sadio, reagem com desconforto, às vezes com a virulência própria de quem discorda dos objetos indiscretos ou de quem por eles exterioriza indisfarçável inveja. Oxalá soubéssemos, por uma vez que fosse, em metódica repristinação, mergulhar no pulsar das veias interiores, e o olhar não se compadecesse com as provocações exteriores.

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