Black Rebel Motorcycle
Club, “Let the Day Begin”, in https://www.youtube.com/watch?v=mmtQwtcaqLM
O Gonçalo era um monárquico à antiga. Tinha dezoito
anos e vestia-se como os avós. Falava como os avós. Tinha uma queda para a História.
Parecia uma enciclopédia ambulante quando era preciso convocar as memórias
datadas nos compêndios da história pátria. Excitava-se quando evocava as gestas
de antepassados que trouxeram a glória pátria ao mundo. Notava-se: era um
nacionalista à moda antiga. Só não se confessava salazarista porque faltava a
bravura (que admirava nos antepassados) para desafiar as convenções ditadas
pelo politicamente correto. Além disso, o Gonçalo tinha ambições que não
quadravam com a estultícia do radicalismo político.
Safava-se a devoção pelo “pretendente ao trono”
(a quem chamava “sua alteza, o rei”, enquanto se desfazia em ostensiva genuflexão).
Tinha modos, o Gonçalo, que nós, os que convivemos com ele um par de semanas
(admitimos que o Gonçalo não aguentou mais tempo de javardice), não tínhamos –
e não éramos propriamente mal-ajambrados em matéria de educação, nem nos dispúnhamos
pelos broncos modos.
Era louça fina, o Gonçalo. Tão fina que, numa
noite, fomos ungidos com um episódio memorável do Gonçalo. Alguns de nós tiveram
a necessidade de libertar as toxinas acumuladas após uma noite de cerveja a
mais. O Gonçalo, que não ingeria bebidas alcoólicas, sentiu a mesma
necessidade. Estávamos naqueles preparos, na casa-de-banho do estabelecimento,
uns vegetando pensamentos infecundos enquanto excretavam os restos da cerveja,
outros concentrados na função para não ser a mesma culminada com um indesejado
incidente, quando o Gonçalo, em terminando a função, puxou um lenço de mão que
guardava no bolso superior do blazer e limpou o instrumento das derradeiras
pingas de urina que tinha acabado de verter. Os que estavam próximos do Gonçalo
foram testemunhas do ato e comentaram no final da noite, depois do Gonçalo se
ter ausentado que a noite já ia adiantada e ele devia umas horas à cama.
Ficamos – como dizer? – perplexos. Um de nós
jurou que o lenço que o Gonçalo usou para evitar a acumulação de indesejados
resquícios de urina na roupa interior não era o mesmo lenço que as pessoas de
bons pergaminhos transportam com o propósito de se assoarem e de limparem a
boca após um espirro. Mal fora: era o que mais faltava o Gonçalo, rapaz de
linhagem exemplar, confundir a serventia das duas funções e meter no nariz ou à
boca o lenço que tinha usado para se desembaraçar dos restos subliminares da
urina excretada.
Anos depois, lembrámos o episódio. Nenhum de nós
voltou a ver o Gonçalo. Nenhum de nós voltou a coincidir com alguém que usava
um lenço de mão para limpar o instrumento pingante. Ficámos sem saber (por ausência
de amostra representativa) se era fetiche dos monárquicos.
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