Grizzly Bear, “Losing All
Sense”, in https://www.youtube.com/watch?v=I4w2f4XLu2s
Quis uma história radiosa contar um conto de fadas
medrando num espelho campeão de generosidade. O espelho – mal sabia a
personagem que diante dele se demorava em narcísica contemplação – era fraudulento.
É daquelas coisas paradoxais a que o mundo tantas vezes adere: sentimentos
nobres devolvidos por métodos reles.
O espelho falava com voz sedosa e palavras
aveludadas. Eram, suas palavras, música para os ouvidos. Música requerida por
uma alma que não se sabia atormentada nos invisíveis corredores por onde se
alardeava. Era como se a personagem tivesse um canto (pequenino, como seria
inevitável) onde só ela existia. Ao canto desse canto, o espelho ornamentado
com flores sempre viçosas; tudo indicava que as flores, por serem tão garridas,
eram mudadas a cada alvorada. Ou então, eram os próprios ardis do espelho que
mandavam dizer que as flores permaneciam vivazes numa perenidade sem engodo, só
para a personagem compor o seu particular mundo de que era imperador incontestado.
O espelho repetia, sem se cansar (essa era sua
função): o amo diante dele estacionado era incomparável. De facto: era único
porque era o único naquele canto, sem contar com o espelho com serventia para o
confirmar. E a personagem, arvorada a amo, exercia a condição suserana para
pavonear garbos infundados, a não ser nos meandros da personalidade assim
inflamada por genuflexões autoimpostas sem o incómodo do contraditório. Não havia
contraditório possível: o palco era ele e o espelho domesticado. Olhava-se ao
espelho, antes das diárias perguntas que terminavam em auto congratulação, e
sentenciava a pose e os ornamentos a preceito da imperial condição que o
espelho devolvia. Ufano, sentia-se coberto por um manto alvo e cheio de joias,
uma coroa rabiscada em estiradores de elevado jaez artístico, e uma coorte que o
pequeno canto, apenas habitado por ele e pelo espelho contrafeito, desmentia
existência. Não interessava: afinal, as contas eram terçadas no terreiro das
fantasias sublimes, onde tudo valia desde que fosse a fazer de conta, onde cada
um podia ser o que lhe aprouvesse.
Um dia, acordou e não pôde laborar no exercício
de autocontemplação. O espelho acordou estilhaçado. Talvez estivesse no fim do
prazo de validade. Ou, talvez também, estivesse exausto de tanta simulação e não
tenha suportado a mitomania para que fora adestrado. A narcísica personagem não
se importunou. O dia seria consagrado à substituição do espelho amestrado.
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