26.9.17

Os espelhos que mentem


Grizzly Bear, “Losing All Sense”, in https://www.youtube.com/watch?v=I4w2f4XLu2s    
Quis uma história radiosa contar um conto de fadas medrando num espelho campeão de generosidade. O espelho – mal sabia a personagem que diante dele se demorava em narcísica contemplação – era fraudulento. É daquelas coisas paradoxais a que o mundo tantas vezes adere: sentimentos nobres devolvidos por métodos reles.
O espelho falava com voz sedosa e palavras aveludadas. Eram, suas palavras, música para os ouvidos. Música requerida por uma alma que não se sabia atormentada nos invisíveis corredores por onde se alardeava. Era como se a personagem tivesse um canto (pequenino, como seria inevitável) onde só ela existia. Ao canto desse canto, o espelho ornamentado com flores sempre viçosas; tudo indicava que as flores, por serem tão garridas, eram mudadas a cada alvorada. Ou então, eram os próprios ardis do espelho que mandavam dizer que as flores permaneciam vivazes numa perenidade sem engodo, só para a personagem compor o seu particular mundo de que era imperador incontestado.
O espelho repetia, sem se cansar (essa era sua função): o amo diante dele estacionado era incomparável. De facto: era único porque era o único naquele canto, sem contar com o espelho com serventia para o confirmar. E a personagem, arvorada a amo, exercia a condição suserana para pavonear garbos infundados, a não ser nos meandros da personalidade assim inflamada por genuflexões autoimpostas sem o incómodo do contraditório. Não havia contraditório possível: o palco era ele e o espelho domesticado. Olhava-se ao espelho, antes das diárias perguntas que terminavam em auto congratulação, e sentenciava a pose e os ornamentos a preceito da imperial condição que o espelho devolvia. Ufano, sentia-se coberto por um manto alvo e cheio de joias, uma coroa rabiscada em estiradores de elevado jaez artístico, e uma coorte que o pequeno canto, apenas habitado por ele e pelo espelho contrafeito, desmentia existência. Não interessava: afinal, as contas eram terçadas no terreiro das fantasias sublimes, onde tudo valia desde que fosse a fazer de conta, onde cada um podia ser o que lhe aprouvesse.
Um dia, acordou e não pôde laborar no exercício de autocontemplação. O espelho acordou estilhaçado. Talvez estivesse no fim do prazo de validade. Ou, talvez também, estivesse exausto de tanta simulação e não tenha suportado a mitomania para que fora adestrado. A narcísica personagem não se importunou. O dia seria consagrado à substituição do espelho amestrado.

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