LCD Soundsystem, “How Do
You Sleep?”, in https://www.youtube.com/watch?v=8zGIItxDTfs
Os copos arrastados na mesa olhavam
pelo fundo vítreo a nesga de mar que se entreabria na fusão com o entardecer. O
voo desregulado das aves emprestava desenhos intempestivos ao céu. O ruído nos
bastidores, sincopado na combustão dos sons díspares, era uma manta de
retalhos. Pusera-se um vento que contrastava com a quietude. Os pássaros
deixaram de povoar o palco contemplado pelos olhos. O mar desarranjou-se e as
ondas subiram nos tamancos, deixando em seu sopé vestígios de espuma – as ondas
despenteadas pelo vento em contrapé.
Dentro dos copos, a bebida quase
esgotada. Pediu outra. “Sim, pode ser o
mesmo” – disparou com indiferença para o rapaz que o veio servir à mesa. Ela
incomodou-se. Não tolerava o ar impante com que as pessoas se dirigem a quem as
serve nos cafés, nos restaurantes, nas pastelarias, nos bares, por todos os
lugares. Na sua maneira de ver, quem praticava esta enquistada forma de empáfia
julgava-se ungido por um complexo de superioridade. De outro modo, só a má-educação
explicava o despautério. Em mais demorada análise, teorizava: desbastada a
camada de verniz, fica à mostra o contrário do complexo de superioridade que
adestra a má-educação de gente malparidamente sobranceira. Limitavam-se a
excretar um complexo de inferioridade seletivamente escondido dos olhares
alheios – não fosse decapada a matriz dos simplórios pergaminhos que se
simulavam na pose altiva. Ela interiorizava outro pensamento, a colar-se na
periferia do anteriormente exposto: não há mal nos pobres pergaminhos a que se
convencionou pespegar rótulos depreciativos. O mal vem da imperatividade dos
pergaminhos. Ninguém tem de mostrar nada. A ninguém devia ser imposto o dever
de estar sob os auspícios do escrutínio alheio.
A bebida veio, enfim. Ao que percebeu
da reação dele, veio tarde e a má horas e não fora confecionada segundo os
diligentes preceitos dos aclamados barman.
Ele protestou com maus modos: “ó rapaz,
diga-me se esta é uma bebida que se apresente. Diga lá ao perito que se esmere
e traga-me outra feita como deve ser.” Ela já não podia conter a explosão
que germinava do mais fundo. Matraqueou os dedos na mesa transparente e não se
conteve:
-
Podias ser mais simpático. Pobre rapaz. Tem ele lá culpa da tua má disposição...
O incómodo foi devolvido em dobro:
-
Podes ir embora quando quiseres. Assim não te incomodo. Ninguém te prende aqui.
-
Vejo que a mudança do vento te indispôs. Não há nada a fazer. Há quem não cresça
com a idade. Ou então, é o passado mal-arrumado que te dispõe para os maus fígados.
Vê se pensas na vida.
-
Era o que mais faltava. Quem és tu
para me apontares o dedo?
-
Ninguém. A partir deste momento, sou ninguém. Não te ires, que de mim perdes
caução para a ira. E para o resto, já agora.
Ela levantou-se e partiu dali para
longe. Desligou o telemóvel. Por dias a fio. Não queria suportar as variações
de humor, incertas, autênticos volte-face sem aviso prévio. Ele já não se
lembrava do episódio quando, estremunhado e com uma terrível cefaleia, acordou
no dia seguinte. Não deu importância ao telemóvel desligado – “deve estar avariado, ou ela esqueceu-se de o
recarregar”, anotava mentalmente, com algum desprezo à mistura. O vento
tinha mudado. A nortada impenitente costurou outras bainhas ao pensamento. Tinha
a certeza que a sua ausência estava a causar dano. Quando deu conta, não sabia
quanto tempo tinha passado, ela estava em pose de sedução e a sedução não lhe
era destinada.
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