27.9.17

Turbulência

LCD Soundsystem, “How Do You Sleep?”, in https://www.youtube.com/watch?v=8zGIItxDTfs    
Os copos arrastados na mesa olhavam pelo fundo vítreo a nesga de mar que se entreabria na fusão com o entardecer. O voo desregulado das aves emprestava desenhos intempestivos ao céu. O ruído nos bastidores, sincopado na combustão dos sons díspares, era uma manta de retalhos. Pusera-se um vento que contrastava com a quietude. Os pássaros deixaram de povoar o palco contemplado pelos olhos. O mar desarranjou-se e as ondas subiram nos tamancos, deixando em seu sopé vestígios de espuma – as ondas despenteadas pelo vento em contrapé.
Dentro dos copos, a bebida quase esgotada. Pediu outra. “Sim, pode ser o mesmo” – disparou com indiferença para o rapaz que o veio servir à mesa. Ela incomodou-se. Não tolerava o ar impante com que as pessoas se dirigem a quem as serve nos cafés, nos restaurantes, nas pastelarias, nos bares, por todos os lugares. Na sua maneira de ver, quem praticava esta enquistada forma de empáfia julgava-se ungido por um complexo de superioridade. De outro modo, só a má-educação explicava o despautério. Em mais demorada análise, teorizava: desbastada a camada de verniz, fica à mostra o contrário do complexo de superioridade que adestra a má-educação de gente malparidamente sobranceira. Limitavam-se a excretar um complexo de inferioridade seletivamente escondido dos olhares alheios – não fosse decapada a matriz dos simplórios pergaminhos que se simulavam na pose altiva. Ela interiorizava outro pensamento, a colar-se na periferia do anteriormente exposto: não há mal nos pobres pergaminhos a que se convencionou pespegar rótulos depreciativos. O mal vem da imperatividade dos pergaminhos. Ninguém tem de mostrar nada. A ninguém devia ser imposto o dever de estar sob os auspícios do escrutínio alheio.
A bebida veio, enfim. Ao que percebeu da reação dele, veio tarde e a má horas e não fora confecionada segundo os diligentes preceitos dos aclamados barman. Ele protestou com maus modos: “ó rapaz, diga-me se esta é uma bebida que se apresente. Diga lá ao perito que se esmere e traga-me outra feita como deve ser.” Ela já não podia conter a explosão que germinava do mais fundo. Matraqueou os dedos na mesa transparente e não se conteve:
- Podias ser mais simpático. Pobre rapaz. Tem ele lá culpa da tua má disposição...
O incómodo foi devolvido em dobro:
- Podes ir embora quando quiseres. Assim não te incomodo. Ninguém te prende aqui.
- Vejo que a mudança do vento te indispôs. Não há nada a fazer. Há quem não cresça com a idade. Ou então, é o passado mal-arrumado que te dispõe para os maus fígados. Vê se pensas na vida.
-  Era o que mais faltava. Quem és tu para me apontares o dedo?
- Ninguém. A partir deste momento, sou ninguém. Não te ires, que de mim perdes caução para a ira. E para o resto, já agora.
Ela levantou-se e partiu dali para longe. Desligou o telemóvel. Por dias a fio. Não queria suportar as variações de humor, incertas, autênticos volte-face sem aviso prévio. Ele já não se lembrava do episódio quando, estremunhado e com uma terrível cefaleia, acordou no dia seguinte. Não deu importância ao telemóvel desligado – “deve estar avariado, ou ela esqueceu-se de o recarregar”, anotava mentalmente, com algum desprezo à mistura. O vento tinha mudado. A nortada impenitente costurou outras bainhas ao pensamento. Tinha a certeza que a sua ausência estava a causar dano. Quando deu conta, não sabia quanto tempo tinha passado, ela estava em pose de sedução e a sedução não lhe era destinada.  

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