31.3.21

Atalaia (short stories #307)

Dry Cleaning, “Unsmart Lady”, in https://www.youtube.com/watch?v=--gEZsKFoj0

         O supremo mandatário do tempo era o que não vacilava no momento da verdade. E o que é o “momento da verdade”, se ninguém tutela a verdade por manifesta impossibilidade da sua consagração? Nem que pusessem todos os cidadãos de atalaia, esquadrinhando de perto os meandros do cordão umbilical da verdade. Pois, logo de seguida, acusariam estes penhores da atalaia contínua de serem partes interessadas. E se não fossem partes e muito menos interessadas? Não estariam dispostos nas labaredas da atalaia. Podiam, por exemplo, pôr o sono em dia em vez de se prestarem à contínua atalaia. Mas quem pode dizer o que é o sono em dia, se ele acontece à noite para a maioria das pessoas? Os arquitetos do idioma deviam repensar as bitolas por que aferem as expressões idiomáticas. Não andariam mal se revissem o critério e anunciassem que doravante se diria “pôr o sono em noite”. Pois desse modo poderiam todos estar de atalaia mesmo enquanto põem o sono em noite. A atalaia também tem o sono reparador como conciliábulo. Só os sonâmbulos (por adulteração do sono) e os assaltados pela insónia (por óbvios motivos) ficariam longe da verificação da verdade. Seriam considerados ineptos para a vigilância contínua. Não contassem com eles para o apuramento da verdade. O que deles não fazia marionetas da mitomania. Nem tudo o que reluz é binário, convém ter como lembrança perene. Insones e sonâmbulos não seriam mandatários do tempo. Conseguiriam circundá-lo, para de seguida o atarem com as cordas grossas manuseadas pelos seus dedos insuspeitos. Estariam de atalaia, à sua maneira, fora da atalaia dos que foram alistados na vigilância lacrada com selo oficial. Não se importavam. Uns, por desacreditarem a verdade e, logo, a vigilância em seu nome. Outros, por não quererem ser misturados com a realidade pungente.  

30.3.21

Sempre verde (short stories #306)

The Limiñanas (feat. Peter Hook), “The Gift”, in https://www.youtube.com/watch?v=A2JcmsB50ZM

(“Evergreen”, o navio encalhado no Canal de Suez que interrompeu a globalização por algum tempo)

       Que não se tenha nada por garantido. A qualquer momento, um golpe de azar dissolve-o. A madurez do adquirido é ilusória. Na altura em que se cumpre a prova dos nove, revela-se a sua fragilidade. Como até o amadurecido é efémero, abrindo brechas quando se julgava uma fortaleza à prova de sismos. Até o que é maduro se conserva verde. Tudo é verde, para sempre. O que desmente as certezas que o Homem providencial fixa na linha do tempo. O Homem providencial, ensimesmado, tende a desvalorizar a História. Considera-se à prova da História, como se fosse o exclusivo tutor da noção de progresso e o progresso o protegesse dos retrocessos. A noção de Homem providencial é contestada. Somos peças únicas à mercê das variáveis que estão fora do nosso controlo. Com o tempo e a madurez que julgamos definitivamente instalada, esquecemo-nos das variáveis que habitam fora da nossa dimensão. Esses fatores podem transtornar o que temos por garantido, interrompendo-o ou até (numa versão pior das consequências) liquidando-o. É nesta contingência que o Homem providencial não se reconhece. Não é de admirar que seja sua vítima predileta. Vítima da paradoxal condição que o subjuga: convencido arauto de um nível de progresso sem precedentes, coloca-se acima das contingências. Quando os maus efeitos das contingências se abatem, o Homem providencial atesta a sua verde condição. Está tão verde como noutras eras. Muito embora, cercado pela cegueira da sua arrogância, garanta que os seus antepassados é que estavam verdes. Não considera a hipótese de um simples grão encravar a engrenagem. Como tudo está relacionado com tudo, esse simples grão é um travão para o demais. É a prova de que tudo é verde, para sempre. Mesmo quando está maduro.

29.3.21

As facas longas

Ana Moura, Branko & Conan Osíris, “Vinte Vinte (Pranto), in https://www.youtube.com/watch?v=WmvskeCUdV8

As facas longas decaem sobre a pele porosa, ameaçando tatuar cicatrizes imprescritíveis. Arrumam a paz pública a um canto, enquanto os beligerantes se preparam para a orgia demencial. Em vez de adormecerem ao canto de um sonho, amadurecem o fogo, todavia estulto, que será o barómetro das intenções.

Os povoados enquistam-se, amedrontados com o espectro de invasões. É como se os tempos estivessem de volta à Idade Média e os óculos se afivelassem pela peste pútrida que colonizou as vontades. Ninguém quer embainhar as armas. Estão prontas a ser terçadas no desprezível amordaçar dos belos instintos. Parece que uma nuvem negra cobre o céu por inteiro, como se uma noite imorredoira se instalasse e fosse sinónimo do inverno sem previsão.

As facas são longas. Dispõem a memória em letargia. As pessoas parecem esquecidas de quem são – ou pode ser exatamente o oposto, regressam à natureza corrompida, contrariando os que saltam de nenúfar em nenúfar contando as proezas da espécie em versos idílicos. Alguns, exilados no estado de beligerância, contradizem as puídas teias em que se concebe a autofagia da espécie: de que serve a construção se ela termina em destruição?

As facas são fundas feridas que se aprestam a ter inventário para memória futura. Sem modos, nem punhos de renda, que a boçalidade se entretece na boca cheia de arestas dos pretendentes à beligerância. Candidatam-se ao papel de açougueiros, passeando as suas facas ensanguentadas, ufanamente hunos. E berram, para que todos ouçam e invistam no medo, que o sangue que verte das facas são lágrimas que não chegaram a ser.

Na sala de espera, à espera da espera que se congemina em tempo fortuito, os guerreiros passam em revista os tempos em que as cerejeiras floriram. A fadiga da bonança exaspera-os. Estão sedentos de sangue. Cansados de lágrimas, o vazadouro da indulgência que extingue a fibra guerreira dos Homens – como se apenas houvesse Homens diligentes, Homens arquitetos do mundo, se os Homens se levantarem contra outros Homens. 

As facas são a funda cicatriz que deixa a mnemónica da beligerância. Uma mnemónica, todavia, depreciada. 

26.3.21

O guarda-rios (short stories #305)

Sault, “Wildfires”, in https://www.youtube.com/watch?v=N1_rQXOQLA8

          Tirava as medidas às margens, antes que o rio transbordasse. Era preciso meter esteios que amparassem a bordadura do rio quando ele fosse tumultuado por intempéries. O guarda-rios, infatigável, era o curador do rio. Estivera entre os operários que, de enxada na mão, salvaram o rio do estertor. Estivera entre os voluntários que livraram o rio da tralha que era o seu descapital de poluição. O empenho mereceu comenda. O guarda-rios já o era antes de ser nomeado. Hoje, está de atalaia contínua. Sete dias por semana. Diz que o rio é a sua vida. Homenageia o nome por que todos o conhecem: “hoje já viste o guarda-rios?”, ouve-se com assiduidade entre quem segue a pegada do rio agora alindado. Ninguém sabe do guarda-rios antes de ser guarda-rios. Houve quem levantasse a suspeita de ser foragido da lei: “não há fumo sem fogo.” As pessoas são naturalmente maledicentes. A sua perícia em esquadrinhar a vida dos outros é impressionante (e isto não é um elogio). Ainda bem que há quem se insurja e proteste contra a ignomínia: “que interessa isso, se o que mais nos interessa, amantes deste rio, é a água cuidada pelo nosso amigo, o senhor guarda-rios?” O guarda-rios, indiferente aos rumores, é de uma dedicação ininterrupta ao rio. Ele guarda o rio como ninguém tem o desvelo de o cuidar a ele. Umas velhas metediças cuidaram de ser namoradiças, alistando umas candidatas para cuidar do guarda-rios. Nenhuma lhe aprouve. Desinteressado, e de forma atabalhoada, desencomendava-se de tais encargos invocando, a seu favor, a sobreocupação do tempo. O guarda-rios tinha-se casado, em segredo, com o rio que era a menina dos seus olhos. E o rio era o menino dos olhos de todos os que o tinham redescoberto. Não havia preço que pagasse o guarda-rios.

25.3.21

As metáforas escondidas

Massive Attack & Young Fathers, “Voodoo in My Blood”, in https://www.youtube.com/watch?v=ElvLZMsYXlo

O comboio sem nome passa no apeadeiro, sem parar. Não se sabe não tem nome ou se é a velocidade que traz que não deixa ver o nome. Talvez apenas esconda o nome, para ninguém o conhecer. Para prosseguir incógnito de apeadeiro em apeadeiro.

Os nomes têm este sortilégio. Arrancam do anonimato as pessoas, as coisas, os lugares. Embebem-nos em identidade. Existiram sem terem um nome por caução. As leis determinam que só têm personalidade quando são crismados com um nome. Não se refugiam na incógnita condição.

Mas há os que se rebelam contra o estatuído. Desafiam as convenções. Querem tirar partido da ausência de nome. Há autores que preferem o conforto do anonimato. Ou do pseudónimo, que é um eufemismo para o lugar incógnito em que querem permanecer. Não têm um nome visível ao olhar dos outros; ou o nome que carregam é um disfarce para não darem a saber a pessoa que em si se lobriga. Os que se disfarçam atrás de um pseudónimo podem, a páginas tantas, errar na confusão entre o nome de batismo e o pseudónimo. Fundem identidades. Até que consigam extinguir a identidade com que nasceram, sobreposta pela identidade em que medrou o nome transfigurado.

Ou pode apenas acontecer que, como o comboio que não deixa ver o nome a quem está no apeadeiro, queiram passar velozmente pela vida, como se fossem cometas que deixam um vestígio feérico no céu, com todos os olhares vertidos para o seu rasto efémero. Preferem os “cinco minutos de fama” a que se segue o esquecimento do que uma vida inteira consagrada ao esquecimento. Não serão autenticamente incógnitos, mas fenómenos transitórios que agarram um instante, um instante que basta, na atenção dos demais.

Os cânones não são diretos, mas insinuam-no: os nomes fundidos na incógnita condição e os outros que se disfarçam de pseudónimos são almas tresmalhadas que escapam ao escrutínio dos pares. Para os canónicos, não merecem o mesmo lugar na cidade. Deviam pertencer a uma condição subalterna à dos seus pares que não se escondem do nome.

Os canónicos deviam aprender que a liberdade não se ensina.

24.3.21

Palavras de cristal

Ólafur Arnalds, “nyepi” (Live in Munich), in https://www.youtube.com/watch?v=Quum8qoG7v0

Sou procurador das palavras que se enfeitam num pranto. Decanto-lhes as lágrimas e fico com elas, secas, nas mãos. Como se de um pedaço de carne fosse preciso repatriar a gangrena, até que ficasse pura outra vez.

Sou a moldura para as palavras ciciadas no mapa depois das léguas andadas. Sem precisar de contar todos os minutos atravessados até ao lugar longínquo que tenho de antemão. Coabito nas palavras irredutíveis. Disponho-as no tear onde se alinham as intenções. Deixo-as à vontade da palavra final.

Sou a ilibação das palavras proscritas. Desenho-as com os dedos ensanguentados. Os olhos marejados abrem-se ao vento, leem as estrofes vindouras com o penhor do entardecer que se arrasta num crepúsculo demorado. Pego num papel e bosquejo umas palavras que se combinam num sentido algébrico. Hão de ser poesia.

Sou a levedura que dá cobertura ao fingimento das palavras. Acentuo a exposição complexa nos múltiplos sinais que se extraem ao sentido das palavras. Fujo do seu sentido literal, essa simplicidade castradora. Deixo que as palavras se amotinem contra a superficialidade do seu sentido comum. É sob o fino verniz que se escondem os lençóis freáticos de onde fruem as palavras que se sobrepõem aos corredores estreitos onde habitam as frivolidades.

Sou o tutor destas palavras de cristal que derrotam a hibernação. Não fico barricado à espera que as palavras me ensinem o seu lugar. Sou eu, do mais alto da ousadia em que me teço, a destinar-lhes lugares e tempos e modos, antes que um atlas contumaz tome conta da empreitada. Espero que a coesão das palavras de cristal desponte na medida inversa da sua aparente fragilidade. Até que as arrecade num promontório austero que não tem medo do vento excessivo e o põe em sentido.

Sou eu que apascento as palavras de cristal. Até que, entronizadas num espelho frugal, sejam a caução do vocabulário escondido.

23.3.21

A lucidez

Bad Sounds, “Avalanche”, in https://www.youtube.com/watch?v=kcm_yJVEgdc

O nevoeiro da manhã é tempero, não é um embaraço. Dizem o contrário, os convidados da tirania em que se concebem os lugares-comuns. Não ganham lugar no rossio onde se concebe a fala. O resto do dia não está por conta deles. A lucidez amanhece com os que postergam o olhar embaciado e fazem a radiografia dos versos implícitos.

Vou pelas margens do rio enquanto a claridade se debate com as insistentes gotículas do nevoeiro. Não tenho o olho do falcão para aprender os interstícios do tempo, mas desconfio que nos seus confins se azula uma temporada que não se amestra no verbo ilíquido dos desconfiados. É esta lucidez que quero deixar em legado. 

Os pescadores continuam o braço-de-ferro com o tempo que parece suspenso pelas cordas do nevoeiro. Esperam por peixe que ceda às armadilhas. Esperam pela morte, que é o seu modo de vida. Conversam uns com os outros, indiferentes ao sortilégio que se congemina nas profundezas do rio. Conferem as armas que esgrimem contra os peixes que se aprestam a ser suas presas. Até a morte pode rimar com ludismo. 

O estuário irrompe entre o nevoeiro. Como um lampejo de lucidez que açambarca um pedaço de geografia para contrariar o amanhecer embaciado. Os olhares sorriem. Desfazem-se do estertor plúmbeo que ditou os alvores do dia. Já não podem dizer que o dia se compunha na sua desajeitada forma – como se fosse imperativo que todos os amanheceres fossem uma aguarela fúlgida a servir-se, como manjar opíparo, aos sentidos.

Não sei da matéria-prima da estética. Não sei em que gramática se desembaraçam dos seus tabus. A lucidez não traz manual de instruções. Não é consuetudinária. Abraça-se à disposição das pessoas, volúvel, sem palavras-chave. A lotaria está pronta, em cada manhã. 

Os que continuam lutuosos, à mercê de um amanhecer, não serviam para a vida em países de rigorosa invernia. Seriam o fermento dessa rigorosa invernia. Não prosperam na infértil safra de um monolítico burel que desarruma a corrupção dos sentidos. Não aprenderam outro idioma. Só sabem que a antítese de uma manhã ensolarada é sinónimo de mau tempo. Estão a léguas da lucidez que educa o olhar a aprender a estética das paisagens que não passam no crivo do bucólico. Não sabem fazer marcha-atrás nos cânones exíguos por que foram instruídos. Ficam à porta da lucidez. Da lucidez reinventada.

22.3.21

Os frutos em espera

The Waterboys, “A Pagan Place”, in https://www.youtube.com/watch?v=tfXGt2MtSs8

Aproveitam o orvalho da madrugada para espigar. Os frutos, sublimes obras sem criador, levantam a primavera. Fazem coro com ela. As pessoas atentas já sabiam que os frutos se anunciavam quando as árvores, um pouco a destempo, explodiram em formosas flores. 

São as mesmas pessoas que contam os dias do avesso, até que a primavera por fim despoje o inverno. Andam à procuram das meticulosas árvores que não desdenham o sol extemporâneo que se evade do assédio invernal. É um exílio para os frutos, que esperam por vez enquanto as árvores se entregam ao paradoxal resguardo do inverno através da sua nudez. 

Por dentro da sua seiva, as árvores sentem o congeminar dos frutos. São ainda frutos em potência, frutos que hão de ser quando espreitarem os primeiros laivos de primavera que dizem, a quem quiser ouvir, que podem devolver os agasalhos aos armários onde se amontoam os despojos do inverno. Os frutos circulam pela seiva. Não se enganam no labirinto das árvores, até tomarem forma na embocadura dos ramos. Esperam, até que os seus dedos irrompam pelos poros da árvore.

As pessoas esperam os frutos que esperam pela sua vez. Como destilam a espera pela primavera. Quando chegam os frutos, a primavera já não é precoce. Mas atiram-se aos frutos como se ainda ontem fosse inverno. Esperam pelos frutos como os frutos esperam pela primavera para terem vez. A extravagância dos frutos é, na posse das pessoas, como a libertação do bojo do inverno. Saciam-se da hibernação forçada. Os frutos sabem-lhes como o dia em que um povo se emancipa do tirano.

Às vezes, os frutos em espera são atraiçoados por primaveras que se antecipam, metendo uma unha no calendário que ainda pertence ao inverno. Fruem antes do tempo. As pessoas inebriam-se. Acreditam que a temporada do inverno emagreceu, deixando mais tempo para a primavera. Às vezes, é uma armadilha. Um golpe de asa do inverno, talvez a destempo, e os frutos que estavam a lobrigar, precocemente extintos, têm de adiar a espera. Até à primavera que se seguir. 

O tempo não se adianta ao tempo.

19.3.21

“Memórias de há atrasado” (redundância compulsória) #2: “salvo melhor opinião”

Dream People, “People Think”, in https://www.youtube.com/watch?v=oxk2gMwCbmc

Um perito oferece a sua perícia. Adverte, como prolegómeno: “salvo melhor opinião”. Oferece, também, a possibilidade de outro perito possuir melhor opinião do que a sua. É, à primeira vista, um gesto de humildade intelectual. A sua pose é a de quem possui capacidades para investigar os meandros de uma complexa causa sem excluir outros da mesma incumbência, admitindo que os que com ele(a) concorrem podem ter diferente conclusão e que até pode ser mais convincente do que a sua.

Primeiro, o perito não se encasula. Não chama a si o monopólio da sapiência. Franqueia as portas a outros que, como ele(a), possuem perícia no assunto. Segundo, num gesto de franqueza que é, ao mesmo tempo, de humildade intelectual, o perito não chama a si o monopólio da verdade. Abre o flanco a outra hermenêutica e admite a hipótese de uma perspetiva diferente da sua ser mais bem capacitada. O perito avisa que o demandante da perícia deve ter o cuidado de sondar perícias diferentes. 

Nestes tempos em que a verdade se enquista no monolitismo do olhar de quem a garante, esta advertência é um oásis. Num tempo em que tanto dominam os ascetas dos imperativos categóricos, em que os adversários são humilhantemente despromovidos para desfazer os seus olhares à insignificância, ter quem admita que há perícia melhor é quase insólito. É tão raro alguém dizer: “está é a minha verdade, mas pode haver quem ofereça uma verdade mais convincente.”

Até que os pés têm de aterrar. Para se apurar que a fórmula “salvo melhor opinião” contém a negação do enunciado. Quando um perito usa este enunciado, acaba por despromover à irrelevância a visão que seja diferente da sua. É o contrário de um gesto de humildade intelectual. Ao advertir que possivelmente existe opinião melhor do que a sua, o perito não esconde que não existe opinião que seja melhor. Existe perícia diferente, mas a sua é melhor. Pois ele(a) trata, após a fórmula inaugural em que endossa a possibilidade de melhor opinião, de articular a argumentação que robustece a sua ideia e desconstrói as ideias que se lhe opõem. Às vezes, recorrendo a argumentos que devastam as ideias opostas. 

Quando um perito avisa, logo a abrir a sua argumentação, “salvo melhor opinião”, esconde uma vaidade nos contrafortes da falsa humildade. Em vez do fingimento, deviam omitir o “salvo melhor opinião”. Pois, do alto da sua torre de marfim, ungidos pela convicção da sua sapiência, estes peritos não admitem que haja opinião melhor do que a sua. 

18.3.21

Os outros não somos nós (short stories #304)

Hot Chip, “Huarache Lights” (live at KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=oNidfSk-5Jw

          De um biombo sem sela, um feixe de luzes disformes açambarca o dia constante. Há holofotes dirigidos aos notáveis. Os outros, falseiam credenciais para terem a atenção dos néones. Urdem o seu fingimento. Até que um deles contraria a anestesia instalada e protesta: “os outros não somos nós.” Há um equívoco na formulação: ele fala em nome próprio, mas usa a primeira pessoa do plural. “É uma figura de estilo”, contrapõe, ao ser avisado da contradição. Não se ensaia um desmentido. A fratura de tantos eus que querem ser os outros arrasta-se pelas ruelas da cidade, ajudando a compor o cenário embaciado que entristece as paredes. “A vontade de sermos os outros alinhava-se na vacina contra o ensimesmar. Caímos no outro extremo.” – acrescenta, melancolicamente (talvez por se rever no diagnóstico que a erupção de lucidez caucionou). Nenhum homem é uma ilha, manda o lugar-comum. Em nós embebe-se uma miríade de circunstâncias, pessoas, palavras, formatos de tempo, mapas arquivados. Não podemos ser as vítimas fáceis da extravagância de um eu que se despe por dentro para ser uma mistura de outros. Se cairmos no logro, um dia destes estamos nas vascas da normalização. Em vias de ser extinta a identidade que nos distingue. “É do interesse dos poderes. A normalização destrói as diferenças. As diferenças somam variáveis que os poderes não conseguem domar.” – disse, enquanto dirigia o olhar contemplativo para o céu desmaiado. Não há óbices à liberdade que se entrecruzem com a diminuição do eu. Alguém contesta: “os outros não somos nós, e isso contém um sentido que pareces desprezar.” É o amparo da lei da reciprocidade. Não devemos ser a diluição nos outros, nem podemos pretender que os outros sejam feitos à nossa imagem. Este deixou de ser um lugar para gurus.

17.3.21

A dança que não cessa

Ólafur Arnalds, “Undone”, in https://www.youtube.com/watch?v=vq9FTz3yIvc

Não seremos reféns dos demónios que se alardeiam na estrada deserta. A dança que dançamos, a dança de que somos feitores sem ninguém como testemunha, não desmaia nas ameaças de estertores que se desembainham. Pois maior é a espada que usamos em nossos corpos, a espada que entretece os passos da dança que embeleza a manhã.

Essa é a dança que não cessa, a nossa. A dança que se adestra nos meus passos desastrados. A dança que segue pela tua mão timoneira. Podemos saber-nos submersos na lava do tempo. Nunca nos damos por náufragos, que a dança é o periscópio que levanta o véu do porvir que sabemos estar do nosso lado. E nós, coreógrafos, anotamos num papel mental as danças que havemos de visitar. As danças em que os corpos são levados a um pedestal. As danças que nos povoam com os fragmentos dos lugares que se nobilitam com o nosso estar. As danças com um doce travo a loucura que ensaiamos sob a ordem da música. As danças mentais que nos transcendem no enredo que sobe a palco. As danças nos socalcos, a vinha por testemunha, e uma jura dos néctares por haver.

Não emudecemos este dom. O demais será apenas um parêntesis. Uma promessa que saberemos cumprir. E mesmo enquanto não for tempo de dança, será a dança que reinventamos nos poros que continuam a suar, na esgrima dos corpos desejosos, na cumplicidade que continua a desenhar uma curva contínua. E dançamos, corpos resistentes, no mais puro ar que da montanha trazemos para dentro de casa, no riso do estuário que oferece o rio ao amplexo do mar, nas palavras que são ditas na armadura do silêncio. Saberemos rasurá-las, quando for preciso. O labirinto em que nos movemos não é à prova de bala. Nós é que somos à prova de bala.

No desenho dos passos coreografados, somos matéria incorruptível. As mãos, saciando-se umas nas outras, os rostos que não envelhecem envelhecendo, as bocas ávidas de beijos, nós sem os nós que não nos pertencem. Um palco exclusivo, do tamanho do mundo, que retemos na imensidão guardada nas nossas mãos fechadas. Só à espera de as abrirmos, na dança que faz do luar o sortilégio escondido nas nossas mãos.

Não deixamos ao acaso as partituras que desenhamos no papel herdado da memória. Escrevemos, as vezes que for preciso, que somos os lídimos coreógrafos de uma dança que não cessa. E fazemos da casa, e do mundo de que somos tutores, a gramática reservada.

16.3.21

Cheque em branco


 Acid Arab, “Club DZ”, in https://www.youtube.com/watch?v=GY2lTWaRIgk

I

Pedra e cal. O avental que se estendia sobre a mesa estava de pedra e cal. As vozes faziam-se ouvir. Sobrepunham-se. Não havia gramática que valesse em tamanha cacofonia. Os que estavam em silêncio acenavam com a cabeça em sinal de consentimento. Passavam um cheque em branco às vozes tartamudeadas. Consentiam-se como figurantes apáticos à mercê das vozes imprecisas.

II

A confiança tinha de ser cega. De outro modo, não era confiança. Não há meio termo entre a desconfiança e a confiança. Nem a confiança quadra com graus e escalas. Ele desafiava: “fecha os olhos e confia em mim.” Não sabia o que vinha a seguir; era apenas um teste à confiança. Ela fechou os olhos. Confiava tanto que endossou um cheque em branco, apenas com a sua assinatura a despedaçar a letargia do documento. Como paga, ele pegou no cheque e rasgou-o em dezasseis pequenos pedaços. Disse-lhe: “podes abrir os olhos”, enquanto dirigia o olhar dela para o chão, onde jaziam os dezasseis pedaços em que o cheque se transformara.

III

Um gato vadio prescreve as intimidades. Recusa pessoas. Descombina-se com elas, habitando as ruas quando a noite endereça as pessoas para as suas casas. Dizem que os gatos vadios não podem confiar nas pessoas. É o ónus de serem maltratados pelas pessoas que desabilitam os gatos. Para elas, a coabitação é um descontrato. Se pudessem, extinguiam os gatos (os vadios e os outros, em homenagem ao princípio da igualdade, ou à mercê da sua irrisória crueldade). Para sobreviverem, os gatos não assinam cheques em branco.

IV

A selva mais seletiva é a que habitam as pessoas quando trabalham. Jogam-se umas contra as outras, numa concorrência que não tem regras de conduta. Não confiam, nem naqueles em que aparentemente podem confiar. Não é infrequente que o primeiro assestar do punhal parta de alguém que não figurava nas primeiras escolhas. As pessoas movem-se no xadrez das conveniências, das jogadas oportunistas, tecendo-se em sua insuspeita hipocrisia. Fingem. E fingem que fingem, para ludibriarem melhor (ou se protegerem de outros ainda melhores na dissimulação). A última cartada que jogariam, seria um cheque (e muito menos em branco).

15.3.21

A temporada dos demónios

M.I.A., “Bad Girls”, in https://www.youtube.com/watch?v=2uYs0gJD-LE

O homem sobe ao palco, pega no porco e salta, salta. “Cheira a napalm”, ouve-se em surdina. Sentia-se uma certa comoção. Ouviam-se alguns aplausos, meras palmas de prata. 

O homem largou o porco e acusou-o: “as tuas palavras são intrujonas.” Os demais esboçaram uma intentona. Que ninguém duvidasse das palavras do porco. Depois de uma breve mudança de palco, o homem que estivera em animada coreografia com o porco subiu à cena, obeso (como se a obesidade do suíno tivesse sido transvasada para o homem). Na audiência, eram distribuídos bolinhos de alecrim. Um circunstante pediu um gin. A menina respondeu que não serviam álcool.

O castelo que estava em pano de fundo apareceu a ornamentar um rio. Tinham criado uma ilha de propósito para o castelo. O tempo não foi generoso para o castelo, tão puído. Numa barcaça que subia vagarosamente o rio, uma velha viúva, presa ao vestido lutuoso, oferecia o seu pranto: “Prometeu prometeu que deixaria de fazer promessas. Mas Prometeu não conseguiu prometer a promessa de não voltar a fazer promessas. Devia perder o nome.” Alguém perguntou se estava condoída pela perda do consorte. Ela respondeu com o pranto interminável, a rima de um silêncio inverosímil numa viúva convencional.

Vindo dos bastidores, um jovem boémio irrompeu pelo palco. Aturdido pelas luzes refulgentes, pareceia desorientado (ou: apenas lisérgico). Os vultos perenes que militam no açambarcamento dos espíritos livres cercaram-no. Murmuravam sílabas ininteligíveis, sobrepondo-se uns aos outros. O jovem boémio não se importunou: “não me assustam, não me assustam! Estou habituado a um longo desfile de demónios, ó burgueses de contrafação.”

Na audiência alguém se indispôs, interrompendo a função. Um homem de meia-idade estava engasgado, quase a perder o ar. Ao contrário dos filmes que usufruem de sortilégios, não havia médicos entre a audiência. O homem continuava engasgado, até que alguém, já em desespero, aplicou uma forte pancada no dorso. O homem cuspiu uma ramada de alecrim que passara pelo coador quando os bolinhos foram confecionados. Já refeito, aliviou-se do contratempo: “estava a ver que hoje ia começar a temporada dos demónios.” 

Não havia médicos, nem cangalheiros, entre os presentes. Foram todos à sua vida, a função interrompida e o homem restabelecido na companhia do jovem boémio, com uma promessa que nem Prometeu ousaria alinhavar: “vamos ao mundo, meu caro, que a morte é a linhagem dos demónios. Vamos à temporada dos que se oferecem à consagração da vida.” 

O homem restabelecido nem pestanejou.

12.3.21

Honni soit qui mal y pense (short stories #303)

Nick Cave & Warren Ellis, “White Elephant”, in https://www.youtube.com/watch?v=C0An_UTpsbE

         Falemos de hermenêutica: não se afivelem intenções perentórias às palavras ditas pela metade. Dirão que ficou ausente a audácia para levar as palavras pela mão até à sua completude, possivelmente porque seriam agressivas, controversas, provocantes, levantando um vendaval em quem as lesse. Não se redarga com essa imputação de intenções. Em vez de se deitarem no rolo compressor da adivinhação, perguntem ao autor pela intencionalidade das palavras; perguntem-lhe por que não conduziu as palavras à sua completude; perguntem-lhe se há leituras dissimuladas nas palavras que ficaram pela metade. O demais não passa de especulação de quem se apressa a colar intenções à intenção do autor das palavras. Não importa saber da sua filiação, ou porque ficaram mutiladas; se foi propositado, ou se foi um acaso. Atalha-se a direito na convocação das intenções que mais convêm ao hermeneuta apressado. A conduta não é apreciável: as intenções que convêm ao apressado hermeneuta condizem com o menoscabar das palavras pela metade. Em devolução de cortesia, o autor das palavras pode acusar os acusadores de serem eles os fautores das intenções que lhe imputam. É um jogo de espelhos em que os inábeis hermeneutas das palavas dos outros ficam mal representados. São, sem o pressentirem, vítimas das palavras mutiladas dos outros. O seu especulativo interpretar é uma autorrevelação: as intenções que imputam como código semântico das palavras mutiladas mostram o que de si diriam essas palavras se fossem seus autores. Antes as deixassem passar em branco. Antes fossem anónimos leitores das palavras pela metade, não arriscando a sua indevida hermenêutica, não arriscando ocupar o palco dos julgadores. Às vezes, o silêncio é o apuramento da lucidez. Quando o silêncio é desconvocado pela sede de falar, a tresleitura mina a capacidade e expõe o retrato fidedigno das intenções dos medíocres hermeneutas. 

11.3.21

Assinatura ilegível

Black Country, New Road, “Athens, France”, in https://www.youtube.com/watch?v=xDcGl8tZhrs

Um assalto à caligrafia: a assinatura, ilegível, coloniza o seu espaço no papel. O documento fica lacrado com o assinado, mesmo que esteja ilegível. Não é preciso saber o nome de quem assinou; é bastante o formalismo da assinatura – um pasto fácil para a fraude. 

Não se impreca a caligrafia pobre que impede a identificação da assinatura. Nem se congemina sobre a intenção (terá o assinante feito de propósito, para o nome não ficar lavrado no papel que carece de caução?). O direito à caligrafia é inalienável.

A assinatura ilegível é aval do anonimato. É um sarrabisco, um amontoado de caracteres indistintos, a distorção da legibilidade. Alguém assinou o documento, atestando a autenticidade, permitindo a produção dos seus efeitos. Se for preciso pedir responsabilidades a quem selou o contratado, não será possível. Se o nome na assinatura ilegível não for dos outorgantes, mas apenas de uma autoridade que viabiliza o documento, o anonimato ornamenta a irresponsabilidade do ato. 

Dizem que os médicos são vezeiros na caligrafia ilegível. O povo até diz, em tom a meias entre o jocoso e o perplexo, “tem letra de médico”. Parece que usam um alfabeto diferente. Num punhado de frases, não se consegue discernir uma palavra. Mais parece uma obra de arte, na categoria abstracionismo, do que um texto, uma mensagem. Em analogia, faz lembrar aqueles que produzem um discurso gongórico. O emaranhado de palavras e a soliloquia não cumprem os requisitos da mensagem que a audiência consegue auditar. Há quem diga que fazem de propósito, justapondo a assinatura ilegível a um discurso que pretendem erudito e inacessível ao cidadão comum. Há quem diga que nem eles entendem o discurso com a sua assinatura ilegível, perdendo o mote e a bússola ao fim de uma frase que se arrasta por tempo a fio. 

Outros sugerem que a assinatura é o espelho da personalidade. Falta saber que paridade estabelecem estes peritos com a assinatura ilegível. Será alguém que esconde a personalidade atrás de uma cortina de sombras? Ou apenas alguém que oculta os meandros do ser para ser tido como uma personagem misteriosa, que provavelmente apetecerá revistar? Ou é apenas a preguiça de alguém que não obtém uma caligrafia reconhecível?

Pode haver que tenha uma coleção de assinaturas e algumas sejam ilegíveis. O que depende do estado de espírito e do dia que se pôs a preceito ou despreceito. Como polissemia de personalidades.

10.3.21

Quando for grande quero ser cidadão (compêndio naïf, para consumo de criancinhas)

Chromatics, “The Sound of Silence”, in https://www.youtube.com/watch?v=yn7HInk_dpc

(Na primeira pessoa de um, ainda, imberbe adolescente)

Não posso esperar pela idade para ser cidadão. Já aprendi na escola que tenho direitos que ganhei logo à nascença. Mas é quando atingir a maioridade que vou ser cidadão pleno. Mal consigo esperar!

Quero pagar impostos! Será boa sina: que à saída da universidade vou ter um emprego à espera. Quero desse salário dar o meu contributo para o prosperar da sociedade, sentir-me parte da sociedade e útil a ela. Quero ajudar na redistribuição a favor dos mais pobres. Estou ansioso por sentir que cada gesto que faça resulta num imposto, para ter a noção que o avanço da sociedade também se deve à minha participação. 

Quero participar nas discussões sobre os grandes assuntos que são falados. Para oferecer as minhas propostas ao contraditório, no compromisso pelo debate aberto e sem preconceitos. Quero participar em todas as eleições, nem que seja para escolher o menos mau. Quero ter a lucidez de ajuizar as propostas que se apresentam a eleições e para decidir se quem está no poder merece continuar ou ser dele despejado. Quero, possivelmente, militar em movimentos cívicos que intervenham por causas em que me reveja. Quero ser o oposto da anorexia cívica que ouço a alguns dos mais velhos identificada como o fermento da crise que parece perpétua.

Quero ter uma informação confiável. Jornais e televisões e rádios onde trabalhem jornalistas bem informados e rigorosos, isentos, incorruptíveis, que não sejam meros braços, armados mas discretos, dos poderes. Sem uma informação confiável, não serei capaz de me desembaraçar a preceito dos deveres de cidadão.

Dispenso que os mandantes e outros atores da política enxameiem o espaço público com uma retórica cheia de viés, distorcida, semeando armadilhas para apanhar os (decerto ainda muitos) desleixados que continuarão a medrar pelo caminho. Quero estar no meu juízo por inteiro e saber que não me apõem mordaças disfarçadas, para entoar ao vento as palavras de protesto se me sentir defraudado. Quero honrar o que os professores me ensinarem e que expõe o desvio da prática adulterada. 

Quero saber que ao longo da vida posso receber as contrapartidas da minha participação na sociedade. Quero ficar sossegado se ficar doente, sabendo que tenho cuidados de saúde à altura. Quero saber que os descontos que vou fazer para a segurança social serão capazes de me garantir uma reforma decente. Quero olhar para a prosperidade, em olhar atual e retrospetivo, e sentir que os impostos pagos não foram apenas um ónus.

Quero que não me passem à frente dos olhos o espantalho da ingenuidade. Para saber que vale a pena não me demitir da condição de cidadão.

9.3.21

Câmara de ecos

Massive Attack, “Bela Lugosi’s Dead” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=GGCk-_cz00U

Havia um labirinto que nunca percebeu. Um prémio sem proeza para os audazes que participavam na emenda da loucura. Por mais que desembaciasse os olhos das arestas improváveis, ciciava as demandas a deuses sem rosto. Algum há de estar de atalaia – murmurava, enquanto compunha a pauta da superstição.

Logo ele, que não admitia um lugar no vocabulário para a superstição. Por vezes, a verosimilhança dos pesadelos é assustadora. É como se uma câmara de ecos descarnasse o campo de visão e as suas vozes sobrepostas, um todo caótico, sem sentido, ajuramentassem uma gramática que faz lembrar um idioma estrangeiro, ininteligível. A recusa do sobressalto combinava com a solidão interior. Não me intimidam estes vultos arcaicos – jurava, enquanto arrumava o oráculo do passado debaixo do cais.

Logo ele, que não tinha trela sobre o passado porque se convencera que o passado não podia causar danos. E, no entanto, havia uma certa vertigem animada pelos pesadelos sem freio que se compunham a partir da partitura do passado. Podia ser que a maresia fosse sedativa. Mas o mar não estava de modas. Um levantamento contra a presunção da temperança tomara conta da paisagem. Até os pássaros que tentam a sorte, siando sobre o mar como pescadores adestrados, estavam exilados. Não são as ondas desordeiras que me fazem desistir do mar – garantia, intransigente com o medonho estado de alma do mar.

Logo ele, que se recusava a dizer “mau tempo”, erodindo as convenções, porque o que dizem ser “mau tempo” é a manifestação sublime dos elementos indomáveis. Esteve um tempo – não sabe quanto – a apreciar a coreografia das ondas que pareciam querer dizer que uma dor sem limites consumia a alma. Por dentro das sucessivas camadas de mar derrotadas pelos penedos havia câmaras de ecos que desenhavam poemas epopeicos. Seriam os fantasmas de náufragos a coligir os atritos do futuro, deixando-os em memória para quem se detivesse a contemplar o mar iracundo. 

Colou o ouvido às paredes do vento que era arrastado até aos penedos, contra a sua vontade. O entardecer subitamente sombrio não era metáfora cantante. Os ecos dispunham-se numa pauta cautelar, e as sílabas, pacientemente possuídas, ensinavam o proveito das manhãs sucessivas. 

8.3.21

Carta fechada

Kings of Leon, “The Bandit”, in https://www.youtube.com/watch?v=PtJCnm88_cU

Às cartas abertas, uma carta fechada. A injunção da publicidade é como se fôssemos obrigados a andar nus, já sem nada para esconder. Um certo modismo sugere a bravura da total exposição em público, dissolvida a reserva íntima como se a coragem quadrasse com a desocultação dos segredos, até dos que mais vergonha podem causar a quem os tutela. 

(Como se a coragem fosse um valor estimável. Como se os valentes que se oferecem ao público na nudez da impudicícia não guardassem só para si uns quantos segredos, daqueles que são inconfessáveis. E, assim como assim, a quem interessam os segredos dos outros e a sua personalidade despida? Os voyeurs do avesso têm de si uma elevada estima: mostram-se como são, sem vernizes ou véus encobridores, e partem do princípio de que há outros que estão interessados em esquadrinhá-los de cima a baixo.)

Pelo contrário, uma carta lacrada. A reserva mental de guardar para o subscritor os meandros que ora o exaltam, ora o abisonham. Pois as vidas são intransmissíveis, como o são as experiências que se acantonam na reserva territorial exclusiva que é o corpo e o pensamento de uma pessoa. As cartas não precisam de ser abertas ao conhecimento exterior. As vidas dos outros têm de ser exaradas por dentro delas, sem as distrair de si com extratos das vidas que lhes são limítrofes.

A carta fechada funciona em circuito fechado. Uma certidão da intimidade que não merece ser adulterada com pública exposição. É um monólogo edificante. Através da carta fechada, pomo-nos a falar com as diversas partes que nos compõem. Não se diga que os outros não são precisos; diga-se, apenas, que nos rudimentos que se entranham no fundo do ser há demandas que só podem obter resposta através da intermediação dos outros eus que habitam dentro do eu tutelar.

Hoje, é fácil a palavra que se condensa numa carta aberta. A antítese da carta fechada não é uma censura exercida sobre os fautores das cartas abertas. Cada um é titular da palavra e sabe, acima dos outros, o que fazer com ela – reservá-la ou torná-la pública. No recurso à carta fechada, aprende-se a evitar o logro da irradiação para o exterior de nós. Muitas vezes, as controvérsias e as tresleituras acontecem porque reagimos, intempestivamente, ao chamamento dos outros. porque somos reféns do imperativo categórico do animal gregário. 

O ensimesmar na carta fechada é uma reação exacerbada que se traduz em misantropia? Depende da hermenêutica dos sentidos. Somos cada vez mais centelhas que querem irradiar para fora de si, em vez de por si aprenderem a tender as pendências. Ao quereremos ser tanto para o exterior, somos cada vez menos de nós mesmos.

5.3.21

Consoante muda (short stories #302)

LCD Soundsystem, “Daft Punk Is Playing at My House” (live”, in https://www.youtube.com/watch?v=nCbNTGCB_vg

          As palavras abatem-se, espessas, sobre a pele nua. São como uma chuva que decanta as cicatrizes que o dia deixou tatuadas na pele. As palavras obedecem a critérios. Escolhem-se. As que ajudam a contemplar a impureza. As que fogem dos comboios tumultuosos que não param nos apeadeiros. As que têm vista para o mundo, como se fossem a sua varanda. As que mobilizam a objeção de consciência. As palavras apátridas, na procuração de uma pertença a que se quer fugir. As que sitiam o fautor, mastins disfarçados de lobos mansos. Jogam-se todas essas palavras no intempestivo campo onde uma gramática sem penhor é o húmus que as espera. Muda-se uma palavra, aqui e ali, no julgamento de que combina melhor do que a substituída. Estas não são desprezadas. Mais tarde podem ter valimento. Os olhos revisitam as palavras eleitas. Hesitam. As mãos rebeldes rasgam a folha; ou, em versão digital, os dedos furiosos operam Ctrl+Alt+Delete. Volta-se à forma inicial. À originalidade da folha em branco. Os olhos fechados convocam novas palavras. É a mudez que as habilita, enquanto voam, dispersas, pela tela que é pano de fundo dos olhos fechados. Às vezes, é um exercício mental, sem folha à mão de semear, sem o computador por perto para processar as palavras inventariadas. Recuperam-se os fragmentos da folha rasgada; ou o ficheiro antes de ter sido apagado. O metódico arregimentar das palavras exige a comparação. Pode ser que a segunda folha – o segundo ficheiro – tenha o mesmo destino e o pensamento regresse ao vazio da casa de partida. Ou não: a imperfeição das palavras angariadas não é intransigente. É inata. Um magma que se transfere para as palavras. Corporizando a mais perfeita impureza que se traduz na insuficiência das palavras. Pois há consoantes que são mudas e nem assim se mudam. 

4.3.21

Onde está a passadeira vermelha?

Max Richter, “Mercy”, in https://www.youtube.com/watch?v=uWrc6ihmaE0

A pompa previa uma passadeira vermelha. Uma perene passadeira vermelha por onde quer que passasse. A diligência do escol consentia a extravagância. Não se dissesse da sua pose que era plástica, ou qualquer outro adjetivo depreciativo. Os comuns mortais devem contínuas genuflexões aos do escol. Mesmo que estes sejam tão mortais como os comuns mortais.

Houve um dia que a passadeira vermelha não estava hasteada à entrada do centro cultural. Indignado, mandou um pajem interpelar o diretor do centro cultural. O pajem, investido na autoridade delegada do membro do escol, interrogou o comissário com a sobranceria que é permitida ao escol. O comissário não tinha sido informado do manifesto de visitas. Não sabia que o distinto membro do escol ia honrar o centro cultural com a sua presença.

O comissário mandou chamar o subordinado responsável pelos assuntos protocolares. Fê-lo sob o escrutínio do membro do escol, com a devida proteção dos pajens agenciados para o protegerem. O subordinado insubordinou-se. Respondeu em maus modos ao comissário e contou-lhe meia dúzia de verdades que estavam atravessadas no goto há uns meses. Não contente, a rebeldia estendeu-se ao membro do escol, invetivando-o por pertencer a uma paradoxal oligarquia: tinha lá admissão, na coerência das coisas – protestou o funcionário, lutando contra as tentativas de amordaçamento dos pajens – um emérito abencerragem que teorizou a igualdade irremediável passear a superioridade de casta e exigir, a cada passo, a passadeira vermelha sob os pés?

Outros subordinados do comissário, tomando nota do burburinho, juntaram-se ao acontecimento e entoaram palavras de apoio ao colega que já estava imobilizado pelos pajens em pose de gorila. Dois deles traziam a passadeira vermelha a tiracolo. O comissário e o membro do escol perceberam que era um motim. Mal tiveram tempo para o perceber, e os dois funcionários do centro cultural arremessaram a passadeira vermelha para cima dos gorilas e do membro do escol, enquanto berravam em coro: “toma lá a tua passadeira vermelha. Embrulha nela a desigualdade que desensinaste. Que te faça bom proveito!”

3.3.21

Raio X

Nick Cave & Warren Ellis, “Carnage”, in https://www.youtube.com/watch?v=3eXtxv1nhwI

A parede dura não pode estilhaçar. Arrumam-se os relógios a um canto, contra as probabilidades da memória. Do tempo sentido, aquele tempo que parecia não ter nada a dizer, sussurram ameaças que se propõem como vãs. Não é um raio X que abre o abismo sob os pés. É o chão, se estiver em falta.

Pergunto ao sangue o que conta. Espero pelas veias limpas, hipótese que se agiganta no crepúsculo por onde espreitam as palavras. Do ontem já não lembro se não que foi ontem. Povoo o olhar com os fragmentos bucólicos da paisagem, um arrepio que serve de tumulto para o corpo. A desobediência não serve de caução. É uma tirania que toma conta do tempo, anestesia que adia a matéria em ebulição. O contágio da noite tumultuosa estende-se ao demais dia, por mais que o sumo interior peça para o corpo se desemaranhar de um prazo de validade.

Às vezes, parece que são imprescritíveis os desmodos dos tempos havidos. Não há preces que revejam a matéria já fundida. Não se quer que seja recuperável, essa matéria; se houver direito a uma súplica, ela que seja na forma de um esquecimento, para que nada sobre do tempo pretérito a não ser um corpo e um pensamento, fecundos, virados para o tempo presente. Como se, submetidos a um zero iniciático, o corpo e o pensamento estivessem prontos para o humilde reaprender.

Opõe-se um senão: o raio X iniciático seria a negação de tudo o que trouxe até ao tempo presente. Não se ilide quem se é por um fortuito eclipsar do formato conhecido. Não se volta ao zero sem o esquecimento do futuro. O raio X transparece as consumições, não é um ato caritativo que habilita uma cura. Não se pode ir ao fundo do poço e apagar das suas paredes as pegadas deixadas em património. Pode-se convocar o tempo presente para administrar, em doses homeopáticas, o remédio do futuro. 

2.3.21

Redundância

The Limiñanas ft. Bertrand Belin, “Dimanche” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=DWeNpmSA0-0

Repreende-se a admirável concentração de sinónimos por metro quadrado? Quem precisa de se repetir deitando mão à fartura de sinónimos, tem a certeza do que afirma, ou julga, erradamente, que o sentido só se aclara se vier ancorado à redundância? 

Primeira hipótese de trabalho: o mestre de cerimónias da redundância obteve uma especialização em encher chouriços, mostrando a pouca competência para a síntese. Atira-se ao gongórico, como se o gongórico fosse critério de enriquecimento do texto. Não aprendeu por outra cartilha, a que desafia os escreventes a se situarem no parapeito da simplicidade. O que pode ser dito num punhado de palavras dispensa a sua prolixa alternativa.

Segunda hipótese à consideração: o redundante excita-se com a proficiência de sinónimos que exibe, como se fosse o seu particular cartão de visita que prova a erudição. Ignora que ninguém o contratou para ser dicionário de outrem. Para dicionário de sinónimos não é preciso deitar mão à literatura. 

Terceira hipótese em cima da mesa: a redundância é um estilo que costura a escrita, uma filigrana meticulosa com o propósito de esvaziar o texto na sua constelação de iterações. Como se o texto fosse um emaranhado de lugares-comuns tecido de propósito, com o propósito de mostrar que a teia labiríntica de palavras que são de si sinónimas tem o efeito terminal de se esgotar no recurso às redundâncias. A inflação de palavras origina o minimalismo do significado.

Quarta hipótese: a redundância foi involuntária. Na correção do texto, a distração deixou passar em branco a redundância e ela ficou plasmada em letra de forma. 

De todas as hipóteses, saber a qual delas corresponde o texto do redundante é um tiro no escuro. A menos que lhe seja perguntada a intenção, na hipótese de o autor ainda estar vivo, sem o que a especulação é o instrumento que sobra para estimar a intenção da redundância, em forma de adivinhação. E mesmo perguntando ao autor, pode não admitir a redundância, atribuindo-a a uma tresleitura de quem o interroga; ou, admitindo-o no seu íntimo, recusa-se a dar parte de fraco, porque ele próprio está do lado dos que se incomodam com redundâncias. 

Sobra a derradeira hipótese de trabalho: a decantação da redundância é um processo estéril. Um julgamento arbitrário que se impõe sobre um texto de outrem. Quem disse que as redundâncias não têm direito à existência?

1.3.21

Quando a oposição era oposição a si mesma

Warpaint, “Ashes to Ashes”, in https://www.youtube.com/watch?v=4Ou7VwS3pSw

(Da série “ciência política para amadores” – e qualquer semelhança com a realidade pode não passar de uma coincidência)

A oposição encarniçada era um distante fogacho da memória. Não os havia, nesses quadrantes, estouvados vozeadores que grasnassem contra o governo. Agora era diferente. Em pessoa, o mais alto magistrado convocava o magistério de unidade: “os tempos são severos e os desafios jogam-se a preceito. Só há lugar à unidade nacional”.

A maioria (não a do governo; das pessoas) andava apática entre a apoplexia do tempo amputado. Angustiadas com os espectros que salivavam a instalação de um apocalipse, as pessoas obedeciam ao mais alto magistrado: “ele sabe do que fala, com a autoridade intelectual da cátedra e da residência permanente nas televisões.” A oposição moderada, a que tem aspirações à alternância no governo, seguiu obedientemente a instrução presidencial. Demitiu-se de ser oposição e entregou a empreitada a um neófito radical que fede a demagogia e calculismo soez.

A oposição com aspirações foi apanhada numa armadilha. O dilema não era de somenos importância. Ora se apresentava com a carga da responsabilidade de quem aspira a ser governo em tempos vindouros, ou boicotava o esfoço de unidade nacional vertido nas palavras presidenciais. No primeiro caso, a oposição hibernava. No segundo caso, era contaminada por laivos de irresponsabilidade que se podiam jogar contra a ambição de se entronizar futuramente. 

O mais alto magistrado tirou o tapete à oposição, condenando-a a um estatuto de duradoura oposição. E a oposição, acatando a doutrina presidencial, esvaziou-se e passou a ser oposição a si mesma. Doravante, será extraída certidão destes tempos inusuais e dir-se-á que tão extravagantes eles foram que até a oposição emudeceu, do silêncio terçando a autofagia. Os regentes, em contrapartida, passando entre os pingos da chuva sem ser molharem, nem tinham de olhar por cima do ombro desconfiados que a oposição estivesse a cuidar do que se esperava ser sua incumbência – ser oposição.

Os historiadores do futuro terão lucidez para determinar que a doutrina presidencial foi o dote oferecido aos regentes, banindo os laivos de dissidência do espaço público. Nesse tempo futuro, fazendo atuar o olhar retrospetivo, dir-se-á que uma peste houve que cuidou de repristinar imperativos categóricos que se julgavam perdidos na memória de uma página negra da História coletiva. Só falta perguntar, aos historiadores do futuro, se a oposição consumida na oposição a si mesma algum dia mudou de estatuto. Se houver algures um historiador do futuro, espera-se resposta – porventura em forma de carta aberta, com tanta popularidade nos tempos atuais.