Acendemos as candeias que se apuram nos dedos. Dizemos: à noite, quando o sono tem inventário, arrematamos os sonhos sem redenção. Não precisamos deles (diríamos, em dúvida). O chão que tateamos é o mapa do tesouro que é o aval dos sonhos que se transfiguraram. Os rostos colam-se ao vidro embaciado. Vemos a chuva de Verão que se abate com uma ira invernal. “Eu gosto das coisas fora do seu lugar”, confidencias, para eu tomar nota que as estações deviam ter lugares trocados até que as pessoas não se cansassem do tempo que é inato às estações. Se as vozes se fundirem no silêncio, não as deixamos sem apeadeiro. Como se fôssemos artesãos, moldamos as paredes necessárias com a ajuda do vento que nos desarruma os cabelos; não queremos que as vozes fiquem órfãs, ou que passem pelo apeadeiro como se fossem um comboio de alta velocidade. São as nossas vozes, a gramática que ecoa. À medida que desenhamos as estrofes, subimos no dorso dos sonhos de que não temos paradeiro. Somos um sonho que emerge por dentro de nós, a carne que se cimenta no lugarejo de que fazemos a nossa cidade. Não arrastamos a indiferença pelas planícies consagradas pela Primavera. As flores que deitamos na fala são mais coloridas e odorosas, são exuberantes. Não precisamos de jardins se somos um fértil canteiro. Se perguntássemos a um erudito, dir-nos-ia que somos o contraste do privilégio – e o contraste está-nos tatuado no olhar que traduz um sortilégio. O nosso sortilégio, que soubemos marear nos confins de uma redenção que não pedimos. É possível que nos despojos estejam as sílabas que encontrámos nos sonhos que são nosso lugar. As sílabas tiradas ao estuário que nos oferece morada sem endereço. A morada onde tiramos as roupas e sabemos que somos apenas a simplicidade da nudez.
8.7.21
Sonhos por procuração (short stories #335)
Mogwai, “Every Country’s Sun” (6 Music Live), in https://www.youtube.com/watch?v=AAdZNBKCyi0
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