Não era o ar pesado da catedral que tecia as sombras sobre a memória. Todas as pedras gastas continham muita História que não vem nos livros. É como inventariar o paradeiro das mãos de um padeiro quando temos o pão entre as nossas mãos. Não nos serve afivelar as espadas que interpelem esse paradeiro. No caso das pedras da catedral, elas têm embebido um lastro que se perde na memória dos tempos. São notas de rodapé. E quem lê as notas de rodapé, se são secundárias ao texto principal? Provavelmente, até um leitor meticuloso deixa de as inventariar. Que a página seja virada do avesso: se as notas de rodapé existem, não são objetos decorativos. É como os detalhes que preenchem a arquitetura da catedral. Não é por acaso que é gótico o seu selo arquitetónico. Os estudiosos, os que se demoraram a dissecar cada centímetro da catedral, sabem identificar os detalhes e cuidaram de os sufragar nos manuais que explicam a catedral. Acontece o mesmo com as vidas. Muitas vezes, só nos preocupamos com o quadro geral e é para ele que olhamos com a distância exigida para termos uma breve ideia. Dispensamos os pormenores. E, todavia, são os pormenores, que só num olhar meticuloso teriam cabimento, que instruem o lastro das coisas que não entendemos. Oxalá não dispensássemos as notas de rodapé que foram sendo arquivadas num quarto furtivo da memória. São elas que permitem avivar o que esteja esquecido. Omiti-las é granjear a desmemória. Como desvalorizar os pequenos recantos de uma catedral não ajuda a entendê-la. Os olhos sentem o apelo do irresistível. Os tempos, que reivindicam para si o epíteto de modernos, não transigem com a criteriosa hermenêutica das notas de rodapé. São tempos que cultivam a desmemória e esse é o seu labéu. São tempos à espera de um tempo que se esgota no efémero.
15.7.21
Nota de rodapé (short stories #338)
The Cure, “A Forest” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=hnVldyHRcjU
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