“Sempre gostei de puzzles. De ver as peças todas espalhadas sobre a mesa, o selo da desorganização, e saber que o meu encargo era montar uma ordem. E, todavia, sou estruturalmente hostil à ordem” – dizia, sem lamentos, enquanto apreciava os estilhaços que o despedaçaram. Uma vez mais, a vida estilhaçada, a franquia de toda uma vida em que o sobressalto se dissolveu num insignificado. As mãos entrelaçadas falavam quase tanto como as palavras que pareciam arrancadas à lava que endurecera. Recusava atirar a cabeça para o cabisbaixo. “Nunca deixei um puzzle órfão.” Tentava perceber se havia vestígios que não fossem ferro-velho, disponíveis para um heurístico recomeçar. Sem eles, a empreitada agiganta-se. Sem eles, é preciso criar tecido próprio, do nada, firmá-lo à procura de esteios. É preciso ser criativo. Há pessoas que só são criativas quando a criatividade fala como dever, quando ela é a condição para emergir de um labirinto asfixiante. “Eu nunca deixei um puzzle órfão. Não me cansarei de repetir. Foi a minha estrénua vontade que dirimiu os contratempos que não tinham solução.” Não olhava para trás. Não havia legado que pudesse emendar. Só interessava dirigir o olhar por cima do umbral que separava o futuro do dia presente (por esta ordem). Arrumando o que estava cristalizado como material perdido. Não lhe falassem de palavras categóricas – sempre e nunca e definitivamente e impossível e agora. “Eu sei dizer que houve puzzles que ergui e que foram dizimados a seguir. E eu ergui-os, outra vez, depois de decantar as peças perecíveis. Nunca capitulei.” Não se atemorizava pela cor do nada que se fundia com o horizonte. As paredes não são feitas de um material frágil. As paredes são o seu corpo, que ele sabe ser à prova de munições. Os puzzles ficam à espera. De um esgar da sua vontade.
9.7.21
Desordem criativa (short stories #336)
Massive Attack, “Protection”, in https://www.youtube.com/watch?v=Epgo8ixX6Wo
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