13.7.21

Ultimato (short stories #337)

New Order, “Bizarre Love Triangle”, in https://www.youtube.com/watch?v=3IJ3XXomxiM

          Todavia, chorava. As lágrimas tingiam a lucidez. Sabia que a obsolescência não gravitava em pose ameaçadora. Havia uma parte que renegava. Uma parte, funda, que despertava a almofada do arrependimento. Mas não se corrigia. Era como se andasse em círculos, partindo da admissão do erro para chegar à sua repetição, uma e outra vez, ampliando as dores excruciantes que tinha de si mesmo. As pesadas censuras exteriores não importavam; mais pesada era a censura que partia da medula. Incorrigível, sentia que os corredores se estreitavam e o labirinto apertava-se contra os limites do corpo. Em vez do exorcismo, era o corpo que empurrava os corredores, fundindo-os numa amostra liquefeita que desenhava os estilhaços em que se compunha. Era preciso o ultimato. Já fora preciso o ultimato muitas vezes. Soubera-o formular, com palavras poucas e certeiras, como convém para o ultimato ter a utilidade desejada. Mas o ultimato evaporava-se no crepúsculo onde levedava a repetição do passado. Era como se não houvesse presente, apenas a reprodução constante do passado – ou o tempo pretérito que saltava as barreiras e desafiava os limites do tempo, dissolvendo o presente. As lágrimas eram interiores. Ácidas e abundantes, alimentando um rio caudaloso que fazia da lucidez uma forasteira. Estava às ordens do instinto. Mesmo sabendo, por experiência própria, que os instintos eram quase sempre um logro e veneravam o oposto da lucidez. Aproveitava a noite para fugir da tutela dos que, de dia, julgava as divindades protetoras. Afinal não eram: as divindades não se distraem, nem perdem de vista os que tutelam. Ou talvez as divindades guardassem mensagens subliminares para que fosse industriado pelos instintos. Talvez os azimutes estivessem errados. E as divindades fossem um disfarce dos demónios que orquestravam a noite não irrisória. Como se os pés estivessem no céu e a cabeça estruturada no chão.

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