O passatempo favorito é meter conversa com desconhecidos. Tem uma teoria: se não meter conversa com desconhecidos eles nunca passam a ser conhecidos. Poucos concordam com a teoria. Não é por meia dúzia de palavras avulsas e conversa de circunstância que um desconhecido se transfigura em conhecido. Discorda. As conversas furtivas não chegam para cimentar amizades. Mas as parcas palavras mercadas com um desconhecido produzem a sua metamorfose num conhecido: da próxima vez que se cruzarem, não será a primeira vez que darão corda à conversa – são, portanto, conhecidos. As palavras avulsas são sobre temas ao acaso. Uma circunstância do momento, a notícia mais comentada, uma desgraça ampliada pelos canais de televisão que semeiam sangue e sobressalto, o futebol (sempre o maldito futebol), a maleita responsável pela visita a uma sala de visitas de um consultório médico, o nada numa esplanada de café, o galanteio invariavelmente frustrado. Parece ter faro. As pessoas com quem mete conversa são como ele, faladores natos. Se lhe perguntassem quantos amigos tem, diria que não passam de uma mão cheia. Alega não precisar de mais. Todavia, traz a tiracolo um abundante inventário de conhecidos. Muitas vezes sai da conversa convencido da transfiguração do desconhecido em conhecido, pese embora não tenham permutado o essencial: as credenciais que determinam a identidade, ficando sem saber os nomes. Às vezes, quando a angústia sobe a cena e a positividade da vida aprendida de manuais iliteratos é anestesiada, tem a impressão que vive uma vida paralela à que seria a sua. Lado a lado com os desconhecidos que só um convencimento trivial eleva à condição de conhecidos. Essa é a sua vida em part time. Desfocada de si mesmo, com uma sede tremenda da vida dos outros. Não por acaso, o seu relógio estilhaçado só mostra uma metade.
7.7.21
Viver por dentro do part time (short stories #334)
Yo La Tengo, “Ohm”, in https://www.youtube.com/watch?v=Py2KOyrtq6o
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