O olhar sitiado pela noite sem sono não decanta as autênticas tonalidades da madrugada. Estão meio inebriados, mas o cansaço já se desprende dos corpos para os deixar no parapeito da letargia. Trocam palavras arrancadas à sede enquanto se arrastam nos primeiros indícios da madrugada. Um dos boémios garatuja umas sílabas. Os outros só percebem que eles não entendem a madrugada. Um protestou: pelo contrário, eles, boémios incorrigíveis, conhecem a madrugada mais vezes do que o cidadão habitual, que vem à vida já a madrugada deixou de o ser. Os cinco boémios concordaram que não é congruente polemizar sobre o rosto da madrugada como eles o conhecem e a sua pose comparativa quando os não boémios são resgatados para o palco em que falam. Ficam, cada um por si, a lobrigar no papel desempenhado pela madrugada. Ela encerra o rosto terminal da sua boémia, como se fosse o aviso de receção do cansaço que há de albergar o sono em contramão com os demais. Para eles, a madrugada é o barómetro que afivela a decadência da noite. Mal a escuridão começa a ser despojada pela primeira luz ainda tímida da alvorada, abatem-se os disfarces que tiveram a caução da noite. (Podiam fazer uma graçola à custa de um adágio popular, mas resistiram à convocatória fácil do lugar-comum.) É assim que se sentem. Peixes fora do aquário. Sendo o aquário o meio onde o cidadão habitual medra na sua vida comezinha. Pois os boémios lamentam as vidas arrastadas e aborrecidas que os cidadãos habituais debitam no cumprimento dos horários. Fossem como eles, boémios insubmissos e penhorados pela bandeira do hedonismo, e saberiam como o prazer tem múltiplas camadas que esgotam o mundano. A noite é o seu palco preferido. São os suspeitos maldizentes da madrugada.
27.7.21
O rosto da madrugada (short stories #340)
Dry Cleaning, “Conversations” @ Supine House, in https://www.youtube.com/watch?v=34jcCnCN_V8
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