22.7.21

Quando as vergonhas dos outros são denunciadas por nós e passam a ser a nossa vergonha

Mac DeMarco, “Chamber of Reflection”, in https://www.youtube.com/watch?v=NY8IS0ssnXQ

Mote: um vídeo que mostra Paulo Rangel a cambalear nas ruas de Bruxelas depois de um jantar eventualmente bem regado. Posto a circular por “fonte anónima”.

Ele há aquele momento em que um covarde se define como covarde. Quando expõe uma vergonha do outro, ou uma sua fragilidade até então escondida do olhar público, e se recolhe à caverna de onde bolçou a inconfidência sem mostrar o rosto. Porventura convencido que é o outro, cuja vergonha passa a ser de confirmação pública, que fica exposto à reverberação da turba. 

Insciente das suas pobres capacidades, o covarde nem sequer se apercebe que é ele, através da sua covardia, que fica mal no retrato. Salva-se do exprobro público por causa do covarde anonimato. Se ao menos soubesse que um olhar descomprometido endossa a maior vergonha ao seu ato covarde, talvez tivesse engolido o sorriso de prazer ao adivinhar a pública reação perante a vergonha que delatou. Mas sua é a maior das vergonhas.

Há um pequeno pedaço que resguardo para a intolerância. Nesse pequeno pedaço acolho estas manifestações de covardia: reservo-lhes o maior desdém e apetece dar caça aos seus autores para destapar o anonimato que é o disfarce mal-amanhado de uma covardia significativa. Para este covarde, é como se ninguém tivesse direito a ter os seus pessoais pecadilhos e todos fossemos um manto de públicas virtudes. Pior: é como se as pessoas não tivessem direito a guardar para si a vida privada, ocultando-a do olhar alcoviteiro e sancionatório de gente que se autoconsidera zeladora da moralidade.

Figurando um cenário imaginário, mas impossível, apetece esquadrinhar a vida destes valentões que ficam convencidos que prestam um serviço público revelando os podres dos outros. Apetece rapar o fundo da arca onde, com a sua existência, apeganham o ar público para descobrir as suas imensas bebedeiras, a pornografia que consomem, as drogas que já inalaram, fumaram, injetaram, ou deglutiram, os desvios sexuais (que assim ajuízam, mas apenas nos outros) e outras figuras tristes que possam ser inventariadas. Apetece tudo isto, mas não para os denunciar em público, que seria jogar com as mesmas pútridas regras por que covardes desta igualha se regem. O propósito seria confrontá-los com os seus esqueletos mal apaiolados, só para impedir que continuassem a assombrar a vida dos outros que foram apanhados na sua obnóxia mealha.

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