Dei-me ao vento enquanto o restolho das folhas prometia o futuro. Não sei se o futuro estava desprevenido. À face da sua ausência, confio na pele emblemática que se oferece aos elementos. Como se fosse um couraçado, exposta na sua fina fragilidade e, no entanto, uma armadura preparada para os contratempos. Sei que as lágrimas são a tatuagem da angústia. Sei que há dias sombrios, a manhã levitando, enlutada, sem razão aparente. Sei que os ofícios que me destratam não pedem favor. Mas também sei onde está o refúgio em mim, a bússola que levanta o olhar para a paisagem bucólica onde são inventariadas as coisas miríficas. Sei que a pele contrariada é o peso medido dos esperados sobressaltos. Um dedo general que se ergue a meio da tempestade e a concilia. Um corpo que se mete no estuário, sem medo da maré-viva. Um olhar insaciável que se sobrepõe ao estertor que se insinua. No mapa das cicatrizes, reúno as minhas como matéria-prima para memória futura. Não estou sitiado por elas; não passam de palcos de outrora onde um tempo se jogou. Mas agora esse tempo está fora do jogo. Agora, sou eu que estou fora do tempo. Congeminando a minha intemporalidade. Sei que posso sair das fronteiras do tempo e procurar-me nos seus interstícios. É como se tivesse descoberto o sortilégio do tempo cauterizado pelo seu próprio palimpsesto, as diferentes camadas do tempo dando múltiplas possibilidades de ser eu. Não me escondo atrás de biombos que diminuem a minha estatura. Não fujo do que sou. A minha estatura é a dos mares todos juntos. Jogo as marés no propósito da minha viabilidade. Sinto que sou mais do que o corpo que o espelho me mostra. Não preciso de paradeiro. Eu sou um mapa que se reinventa. Todos os dias.
23.7.21
Declaração de interesses (short stories #339)
Ólafur Arnalds, “Saudade (When We Are Born)”, in https://www.youtube.com/watch?v=1A1Fts-2SPI
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