5.7.21

Espólio (short stories #333)

Gorillaz, “Stylo” (live at Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=NJOQiKKsoUM

         O rebanho é a ideia ancestral da irrelevância do espírito livre e nem quando se sujeita à transumância desagua num bastião de liberdade. Dizem que há palavras que merecem ser começadas por letra maiúscula e liberdade é uma delas – quase como se fosse deificada. Não sejamos atraiçoados por uma contradição de termos: se entronizarmos semanticamente a liberdade, grafando-a com L maiúsculo, tropeçamos nos nossos despojos por exaltarmos o oposto do pretendido. A liberdade só o é se não estiver amarrada a essa teia semântica. Não sejamos tarefeiros involuntários dos ventos que não são da nossa feição. Ao contrário dos rios, que são domados por barragens, o vento não está à mercê da influência dos Homens. Se deixarmos cada átomo falar por si, sem nada forjar a seu favor, teremos a mais descomprometida liberdade. Não se diga que a liberdade se congemina, pois ao ser congeminada está moldada numa camisa-de-forças e acaba mergulhada noutra contradição de termos. Deixemos que o conceito se faça pela espontaneidade que o encerra. Sejamos seus rendeiros natos. Sem esquecer um dever geral de denúncia dos apóstatas que forçam uma certa liberdade sobre os demais – uma liberdade condicionada, a antítese da liberdade. A liberdade não se proclama, apenas. Pratica-se. Respeitando o que os outros têm a dizer sobre o que entendem ser a sua liberdade. É no vagar desta recompensa que assenta o espólio que deixamos para memória futura. Uma catedral sem deus, um palácio sem suserano, uma ideia sem autor, o ser-se sem o corpo e a fala amordaçados, sem tutor. A liberdade não obedece a mapas, do mesmo modo que um espólio não tartamudeia na fala dos outros. A tempo de sermos uma vida vivida por dentro de nós, destinando aos outros o respetivo ser, deixamos por nossa conta as fronteiras do espólio. Cada um desenha a sua liberdade.

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