12.7.21

Quem não teme, não deve

Arlo Parks, “Too Good”, in https://www.youtube.com/watch?v=-gFCd5CE4bg

Mote: “Now I can go to the bank?”, António Costa para Ursula von der Leyen depois de confirmar que Portugal vai receber o seu quinhão da bazuca europeia.

Temos quadros mentais que desfilam no pensamento para enquadrar certas representações com personagens próprios. Admita-se que o humor pode sair torcido (ou, melhor dizendo: distorcido) e uma graçola fica emoldurada como uma frase dita na circunstância errada e no lugar errado. Quem não conhece aqueles que se têm em elevada consideração como humoristas, mas não passam de um logro – aqueles que narram a anedota e soltam a gargalhada antes de todos os outros? Até podia ser. Até seria melhor que assim fosse, um tiro ao lado na verve humorista, ou apenas a confirmação de um dia em que as palavras deviam ficar cingidas à sua expressão minimalista. Há poetas que o são só de estarem calados. 

No teatro da política, onde tudo se polariza cada vez mais, é difícil encontrar um meio termo. Tudo se perdoa a uma personagem, do mesmo modo que o menor deslize pode ser transfigurado numa boutade que daria lugar a retratação (ou até, para os mais exagerados, à demissão). A pose do primeiro-ministro não passaria de uma desengonçada manifestação de humor perante o embaraço da presidente da Comissão Europeia. Como poderia ser o epitome de um devir nacional, a revelação do estatuto de dependência dos subsídios da União Europeia (UE), como se a nossa participação na UE se resumisse aos subsídios que ela nos destina. 

Por outras palavras, para sintetizar os dois cenários alternativos que se perfilam: ou é o primeiro-ministro que desastradamente ensaiou um momento de descontração, para contrariar a solenidade do momento (versão de quem desvaloriza o acontecido, ou de quem avaliza todos os atos e as palavras de membros do governo); ou são os críticos que se assanham pela imagem de um país de cócoras perante os subsídios que proveem da UE, talvez sem darem conta que, afinal, essa indigência corporiza uma parte importante da idiossincrasia nacional. Fica ao critério do leitor. 

Se o acaso (ou a convicção) colocar o leitor na primeira hipótese, tenderá a não imputar uma interpretação literal às palavras do primeiro-ministro à presidente da Comissão Europeia. Poderá, até, arranjar justificações que passem pelo atropelo gramatical de quem não domina o idioma inglês (pois teria de interrogar “can I now go to the bank?”). Ou poderá tender a aligeirar o episódio, no ensaio hermenêutico de quem desvaloriza as palavras que saíram da boca de Costa. 

Se o acaso (ou a conveniência) fizer do leitor um crítico do acontecido, argumentará que o humor (mesmo que em manifesto ensaio falhado) não quadra com a solenidade do momento. Argumentará, ainda, que o primeiro-ministro foi autor de um melodrama que sintetiza muito do sentir nacional, se o leitor estiver incluído entre os que alinham no incorrigível pessimismo da portugalidade. Pois o leitor não perdoará a Costa a imagem de indigência que se cola às palavras que proferiu assim que findou a cerimónia que selou a vinda da bazuca europeia que, dizem, nos vai salvar da catástrofe económica ajuramentada pela pandemia.

A vantagem da dialética é a de colocar em confronto as diferentes posições e de se reconhecer que elas são antagónicas porque se cimentam em diferentes pressupostos (e, talvez, em diferentes interesses, cuja geometria é variável consoante o tempo e as circunstâncias). O melodrama pátrio terá sido servido naquele momento em que o primeiro-ministro pergunta (como se fosse necessário confirmá-lo – afinal, o contrato acabara de ser selado!) se já pode ir ao banco. Tudo depende da hermenêutica do leitor quando confrontado com o palco onde a cena foi servida. Sem os grilhões dos imperativos categóricos que têm origem nas fações que se polarizam. Nem os adeptos do governo podem impedir que os seus críticos mordam nas canelas do primeiro-ministro por causa das suas desastradas palavras; nem os perenes críticos de Costa devem fazer uma tempestade num copo de água, a menos que insistam em mergulhar no magma semântico das suas palavras e invertam o adágio, advertindo: “quem não teme, não deve.”

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