31.8.21

Deviam alterar os compêndios idiomáticos para que uma visita de médico valha pelo que vale (e não é pouco)

Jungle, “Truth”, in https://www.youtube.com/watch?v=TcP8zQPQOEM

A incrustada mania de estimar tudo pela quantidade leva a considerar válidas as visitas que se demoram. Ao ponto de as convenções idiomáticas terem representado as visitas efémeras como dignas de uma visita de médico. Porque os médicos limitam-se a breves momentos com os pacientes e estes gostariam que se demorassem, talvez para apurarem com inteira certeza o diagnóstico e a prescrição que habilita o paciente a derrotar a maleita.

Se assim fosse, os esculápios teriam, porventura, de trabalhar três vezes mais do que trabalham (alvitre sem base estatística). A alternativa seria deixar para quartas núpcias os pacientes que não fossem a tempo de uma meticulosa visita por causa da tanta demora nas visitas aos pacientes anteriores. Há sempre alguém que ficaria a perder se os médicos fossem constituídos na obrigação de se demorarem em cada paciente. 

A ideia subliminar é a de que os médicos estão cheios de pressa (pois podem ter um imenso rol de pacientes para estimar) ou, por passarem de raspão por cada paciente, não lhes conferem a atenção de que são merecedores enquanto seus pacientes (o que invalida a hipótese de o médico experimentado precisar de pouco tempo para radiografar o estado de saúde do paciente). Vingou a ideia de que o tempo deve-se arrastar, sob pena de a brevidade ser julgada como insultuosa do utente.

Este é o pano de fundo para outra falácia: quando visitamos alguém e saímos ao fim de pouco tempo, arriscamos a ouvir, em tom de reprovação (ou de sarcasmo), que fizemos uma visita de médico. A duração das visitas é contaminada pelo efeito de arrastamento das indevidas convenções idiomáticas que atiram para cima dos médicos o opróbrio do tempo que se consome vorazmente. E nós, os que não gostamos de visitas delongadas, não sendo médicos, acabamos enredados nessa teia que enxovalha, injustamente, os médicos.

Tal como acontece com o tempo detido pelos médicos, as visitas a alguém não se podem medir pela métrica do tempo a que correspondem. Podemos estar muito tempo com alguém e, se durante esse tempo, a conversa não ultrapassa o verbete das banalidades, pouco fica da visita para memória futura. Podemos estar tempo a eito com alguém, mas se cada um passar o tempo a olhar para o telemóvel, a visita encaixa-se no longo tempo de que não sobra nada para memória futura. E podemos cingir a visita a pouco tempo e, todavia, esse ser um tempo sumarento e a visita fica guardada para memória futura.

O que fazemos com o tempo devia ter uma métrica diferente da que está vertida nos relógios. Devíamos ser os medidores da qualidade do tempo. Para decifrar o seu sortilégio: o tempo afere-se pela sua qualidade, não pelo cúmulo de segundos, minutos, dias, horas e dias.

30.8.21

A metáfora do pesadelo

New Order, “Dreams Never End”, in https://www.youtube.com/watch?v=78To_JhbmT0

A nudez no meio da rua. Sem saber: como aconteceu a nudez e em que rua estava. As outras pessoas, indiferentes, acalmando o tonitruante pesadelo. O receio de ser descoberto prolonga a estadia na rua em crua nudez. Prolonga o pesadelo. Fala-se de fuga pelas ruas estreitas da cidade, escolhidas a dedo para quadrar com a ausência de transeuntes. Falo, mas não sei com quem.

Uma ponte atravessada por muita gente (até por turistas). A meio da ponte, um cataclismo: a ponte estreita-se e passa a ser um fino corredor metálico onde as pessoas têm de fazer de trapezistas. Algumas caem mal ensaiam a sua intrepidez. Os corpos volatilizam-se na queda. Não são engolidos pelo rio. (O rio não quer dores de consciência, como se tivesse culpa do desabamento da ponte, como se tivesse culpa da intrepidez – e do demencial avanço para o qual não estão preparadas – das pessoas.)

A voz emudece, quando mais dela precisava. Uma audiência espera pelas palavras prometidas. Mas a voz emudecida toma conta do tempo. O corpo trespassado de medo não chega a sentir o medo. Dir-se-ia que hibernou num remoto labirinto que aprisiona a fala. A pateada ecoa na audiência. O medo retesado grita através do avesso das veias. Um grito de dor sobe à garganta, está preparado para revelar como é lancinante a angústia que atravessa o sangue. Não consegue. A voz mantém-se muda, enquanto o palco é retirado sob os pés e caio a pique no abismo.

Há pessoas que encarnam personagens fantasmagóricas e poluem os sonhos (transfigurando-os em pesadelos). Não são convidadas para o pesadelo. Os pesadelos entronizam-se num promontório onde a vontade é indiferente. É como se os pesadelos fossem a metáfora da vida: quase tudo está fora da vontade, à mercê de um teatro onde se jogam, aleatórias, as circunstâncias avulsas.

Um lugar nunca dantes visitado. Um idioma ininteligível. Ninguém fala a língua franca. Não é possível comunicar, a não ser pela linguagem tosca dos gestos moratórios. As pessoas apresentam os seus rostos seráficos, insensíveis. É como se estivesse naquele lugar e ninguém me visse. Abro o mapa. O lugar não está cadastrado. Vejo a nudez com a mediação da vidraça na estação de comboios. Não me sobressalta. Os corpos estão todos nus. Sem surpresa. Nascemos todos nus.

27.8.21

Baterás três vezes na madeira para esconjurar o azar (e outras superstições) (short stories #360)

Chemical Brothers, “Midnight Madness”, in https://www.youtube.com/watch?v=cHtoBqmRYfA

          A madeira tem propriedades heurísticas. Por exemplo: se percutida três vezes com os nós dos dedos da mão direita, o agente fica protegido contra os azares em toda as suas transfigurações (o azar em sentido literal, o mau olhado, a mofina, o pé frio, etc.). Alguns homeopatas das almas certificarão a madeira, que atua como um blindado que precata as aleivosias que atentem contra a sorte. Ainda está por saber (a ciência esotérica não avançou tanto) se os veios que preenchem os toros de madeira são uma quimera contra o mau olhado, ou se a mofina fica desarmada com o leve percutir dos nós dos dedos por ser muito sensível a ruídos. (Hipótese em que ter-se-ia de questionar porque outros sons, bolçando mais decibéis, não produzem um efeito regenerativo contra os infortúnios.) Os homeopatas das almas ainda não esclareceram se todo o pau serve para a obra de esconjurar o azar, ou se são certos tipos de madeira que possuem certificação. Ou ainda: quando incêndios estivais devastam florestas inteiras, se o mero percutir dos dedos dos guardas-florestais não seria suficiente para travar o lume assassino de árvores. Os incêndios florestais são a demonstração que a homeopatia das almas que garante o sortilégio da madeira percutida três vezes é um logro. Como parece atestar os muitos fiascos de que foram vítimas filhos diletos das superstições, quando fica comprovado que a superstição não passou de isso mesmo, sem efeitos visíveis no que se pretendia salvaguardado através da ativação da superstição. As pessoas já deviam ter aprendido que o simbolismo das superstições se esgota num poço vazio de onde não se retiram os efeitos pretendidos pelos divulgadores de superstições. Os que creem nas superstições são o público aval das suas interiores fragilidades. 

26.8.21

Eles (short stories #359)

Thundercat, “Them Changes” (live at Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=IbCKIqlmxD4

          Dizem que é mais fácil ser eles do que o eu tangível. Pois eles não admitem os contratempos que são a interrupção do tempo claro que adultera o eu que se tange. Eles são sempre fora da órbitra do eu, um apetecível chamamento para saber o que se fixa no exterior do eu. Eles não são eu. Mas se fosse eles o eu deixava de ser eu. Ou seria a transfiguração deles, contaminados por um eu neles transformado. Pode ser que eles sejam eu, também. Ou que eu, integrando um todo, seja parte deles. Termos em que o eu é sempre eles. Sem que eles cheguem a ser contíguos ao eu. Este desligamento imperativo sela a emancipação do eu. Se o eu se resumir à pertença a um eles, nunca deixará de ser apenas eles, diluído no grupo que integra. Não se tresleiam as palavras: um eu que se delimita do eles não é uma encarnação narcísica de um eu que não se revê neles; é apenas a fixação de fronteiras, a intangibilidade do eu que não se funde no eles nem a eles limita a sua existência. Eles são importantes. O eu não consegue viver sem eles. O eu é gregário. Eles são, por imposição conceptual, gregários. A fusão processa-se dentro das fronteiras que admitem as diferenças entre o eu e eles, e entre cada eu que integra o eles. O eu não é o somatório deles. E seria simplista configurar eles como o somatório de todos os eus que em si gravitam. O eu que se integra neles pode não se rever em todas as suas idiossincrasias, para não perder a autonomia ou hipotecar a vontade. Não é por coabitar nesta delimitação que perde a sua identidade. Eles não são uma prisão. São uma possibilidade, que o eu aceita ou não. 

25.8.21

Façamos os números falar da maneira que queremos que eles falem

Beach House, “Space Song”, in https://www.youtube.com/watch?v=fqpiFLA21E0

Dos jornais: no “campeonato” da vacinação contra o vírus pandémico, estamos no décimo-primeiro lugar. No mesmo dia, horas depois da matinal leitura dos jornais, um secretário de Estado da tutela informa, com (a seu ver) justificável bazófia, que o lugar que nos pertence é o terceiro.

(Estes rankings têm o seu quê de pueril. Escondido atrás dos números, um espelho para mostrar – conforme as conveniências dos finos analistas – como um país se saiu bem no desiderato ou como ficou aquém do desejado, para depois se terçar a politiquice que deixa por resolver o principal assunto.)

Desconheço a alquimia que possibilitou a inopinada ascensão no ranking da manhã para a tarde. Não terão sido as vacinas programadas para esse período, que milagres destes pertencem ao esoterismo das religiões e das crendices populares. Desconheço se terão sido usadas diferentes metodologias para calcular a percentagem de população já inoculada ao ponto de, num punhado de horas, termos subido vertiginosamente do décimo-primeiro para o terceiro lugar. Pouco disso interessará. 

Mais importante é estimar dois efeitos que resultam desta batalha de números que os mostra contraditórios. Primeiro, os números pertencem a uma ciência exata, mas a sua manipulação expõe-se ao subjetivismo próprio de quem os manipula e dos interesses que carrega. Se for alterada uma das variáveis que entram na equação são obtidos resultados diferentes. Se, com isso, o resultado final é mais propício a quem encomendou a empreitada, escolha-se esse critério porque é o que mais convém. Aos costumes, nada se diga quanto às questões metodológicas e à justificação da escolha de um método em detrimento de outros. A seleção parece baseada no fundamento “é assim, porque sim”, um eufemismo para condecorar a imagem de quem se sente responsável por resultados tão favoráveis.

Em segundo lugar, com tudo se faz política – melhor dizendo, politiquice. Testemunhar o ar ufano do regente, ao triunfalmente afirmar que somos o terceiro melhor país na vacinação, é um convite para o cidadão o aplaudir, ele ali na condição de porta-voz do governo. E como a memória é alimentada por pilhas de muito curta duração, o que conta é a mensagem mais recente, passando por cima de toda a errância que dominou a ação do governo durante tanto tempo. Em seu abono, admita-se que essa errância não foi um fenómeno exclusivo.

Para completo escrutínio do episódio, só faltou algum plumitivo (que parecem domesticados quando recebem informações dos regentes) perguntar por que golpe de magia subiu o país do décimo-primeiro para o terceiro lugar num punhado de horas. Disso ficámos a saber zero, por demissão de quem devia escrutinar a retórica dos regentes.

24.8.21

Conversa de surdos (short stories #358)

Gorillaz ft. Robert Smith, “Strange Timez” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=sgs0snFlHs8

          Diziam: os olhos estão fechados, ela não consegue ouvir. Contrapunham: se a manhã não estivesse chuvosa, havia menos gente a sobrepovoar as lojas. Talvez não fosse relevante: o chamamento dos prazeres gastronómicos levou-os a indagar onde poderiam amesendar condignamente. Nada que importunasse os outros: em vez do teatro, haveriam de ir ao cinema (essa foi uma das resoluções do dia). Os primeiros não davam o flanco: era preciso discutir a crise de egos que chocavam de frente e poluíam o ambiente na empresa (um dilema verdadeiramente existencial, se se desse o caso de terem vida fora do trabalho). Matéria que não sobressaltava os outros: o capitalismo é a fonte de todos os males, aquela discussão (estéril) confirmava-o. Pudessem os primeiros ecoar outras dores e uma certa propensão para a hipocondria daria à superfície. Era o poder demiúrgico da paisagem rural que encantava os outros: reféns de uma contradição (quem o não é?), endossavam para um deus qualquer o sortilégio que enfeitava o olhar. Os primeiros consideram-se mais terra a terra: a terra é uma matéria-prima, não se deifica. Muito embora estes sejam os que acreditam em deus. Até as horas habitavam em marés contrárias. Uns celebravam a alvorada, os outros arrastavam os corpos para o núcleo da noite e era aí que se reificavam. Um dia houve em que convergiram em lugar neutro. Disfarçaram a indiferença uns dos outros. Só falam entre si, não para os outros. Houvesse um observador imparcial e da sua arbitragem ficaria registado um diálogo de surdos. A dissemelhança tutelava a impossibilidade de diálogo. Conversavam entre si e, dentro de cada grupo, fingiam que não ouviam as conversas limítrofes dos outros. Não queriam ouvir os outros. Afinal, os feudos não são um atavismo que recorda a Idade Média. O diálogo de surdos é o medievalismo revivido. 

23.8.21

O abecedário do nó górdio (short stories #357)

Ty Segall and Denée Segall, “Feel Good”, in https://www.youtube.com/watch?v=yI24-fxsigo

          A terraplanagem erradica todas as raízes avulsas que se caldeavam com o subsolo. Pergunta-se ao sol se ainda falta muito para o enfado. O sol continua calado. Mas não é de respostas que partimos em demanda. Os muitos nós górdios que vêm calhar às mãos são uma graça. Significa que existem. Significa que estamos de atalaia para derrotar a letargia que é a matéria-prima do conformismo, paredes-meias com uma dormência que nos desapossa da vontade. Continuamos interessados em congeminar perguntas. Em saber que há perguntas inesgotáveis e que nos compete fazê-las. Não está em causa desatar os nós górdios que parecem um dilema intransitável. Esse é o seu abecedário – existem, e nós, com a sua existência, sabemos que engordamos com uma gordura boa, dirigindo a sensibilidade para as páginas até então fechadas sobre o seu cadeado. Dantes, quando a omissão de respostas fervia a angústia, era como se mergulhássemos num labirinto ensurdecedor, as vozes sobrepostas umas às outras num caldo de palavras sem sentido. O nó górdio era um contratempo. Isso era dantes. A madurez coabita com um lado escondido que vem ao de cima. E é esse lado escondido que oferece ao olhar novos ângulos que dantes estavam ocultos. Um nó górdio existe para ser desatado. Desatá-lo não exige uma resposta por cada interrogação derramada. As interrogações formuladas são o húmus necessário. O máximo denominador comum que preside à emergência de um nó górdio. É então que se desvendam as novas avenidas que passam a nortear o olhar. Avenidas novas, à espera de arroteamento. Ao contrário do estabelecido, o nó górdio desata-se quando temos a lucidez de saber as interrogações que devem ser hasteadas. Ao fazê-las, sabemos que são as interrogações acertadas. E começamos a desengatilhar o dilema que cimenta o nó górdio.

20.8.21

Vidro fosco (short stories #356)

Interpol, “NYC”, in https://www.youtube.com/watch?v=5GRNCNZ_TL4

          Sobre os sonhos que amanhecem sob a égide da clepsidra, não digo nada. No avesso da fala, enquanto amadurece o silêncio e nem sereias se fazem ouvir, conjeturam-se as hipóteses válidas. Sob a copa da árvore centrípeta, arrumam-se os rostos seráficos das viúvas perenes; elas esperam pelo murmúrio das memórias. Não estão à espera do entardecer. Não é a geometria dos verbos que se antecipa ao espaço que se joga ao porvir. Os dentes à mostra são o presságio de um sorriso. Já deixou de ser o tempo em que os sorrisos estavam exilados contra a sua vontade. Agora, estes sorrisos substituem as vozes. Falam mais do que mil estrofes. Ao cuidado dos boémios, os tempos renovados promovem um demorado agradecimento. As angústias voltam ao perímetro dos misantropos. Não são os açaimes imperativos que disfarçam essa condição. As pessoas dizem (possivelmente, não sem razão) que os rostos desalfandegados escondem os fingimentos. Como se se tratasse de uma devolução à condição primitiva; os fingimentos sem precisarem de um biombo para serem a fala mais alta. Falta saber quando se considera o começo para se falar da condição primitiva. Porque atrás de um tempo há sempre um tempo por indagar. Por determinar está o momento fundacional. Até lá, que ninguém dispute o significado da condição primitiva. Que ninguém estabeleça imperativos categóricos. Que ninguém ouse sentenças inapeláveis. Que ninguém se diga tutor da única voz audível. Há toda uma História por narrar. Aberta aos vários olhares que se terçam. Não se esperem altares privilegiados ou santuários ocupados por verdades irrefutáveis. Não se decrete a repristinação dos tempos havidos, por pressentimento ainda por assentar. Dizem que nada será igual ao de antanho. Falta a autópsia metódica, ainda à espera dos espíritos clarividentes. Fixando, como ponto de partida, a recusa de epifanias.  

19.8.21

Sentinela (short stories #355)

Orelha Negra ft. A Garota Não, “Ready (Mulher Batida)”, in https://www.youtube.com/watch?v=2fF0NTUIqyY

          Perfuma-se o caudal com as sementes do sabugueiro colhidas no Outono. Atira-se um pouco do Outono para o meio do Verão, como sua temperança. Não se diga que nesta cidade o estio não é moderado. Há manhãs que nascem sob os auspícios do nevoeiro maciço. Por vezes, o dia prolonga-se deitado neste sofá de névoa, teimosamente. Noutros lugares, o Verão estigmatiza. Aqui o Outono é o nosso sentinela, os que não admitimos a concurso um Verão que é uma febre no corpo. Passeamos na orla da neblina que transbordou a geografia e tomou conta da cidade, embaciando o calendário que é uma súplica de Verão. Pelo menos, para os que, contristados, se amotinam contra o sentinela outonal que persiste, desmentindo o calendário. A menos que este lugar seja uma exceção e seja o exílio do Verão. Se não é pelo persistente nevoeiro que entristece os veraneantes, é pela nortada que desarruma tudo enquanto vocifera. Incluindo os corpos que mal pressentem o sol se atravessam nos lugares junto ao mar. Há quem pergunte se a intermediação do Outono foi requisitada por alguém. Ninguém se inculpa. Pois é de culpa que se trata, ao sentir-se em surdina um protesto não disfarçado contra o Verão acanhado. Os deuses que tutelam o tempo não dão ouvidos ao clamor, e há quem insinue que os deuses têm razão para castigar os veraneantes da cidade que tinham ambições de um Verão parecido como o dos outros lugares. Não se discutem estas coisas, guardadas para o magma onde fervilha o gatilho do clamor adiado. Pelo caminho, a geografia não muda de lugar. A combinação dos deuses manter-se-á, sentinela de todos os que exsudam ira de cada vez que, por engano, a canícula aldraba os deuses do nevoeiro e se abate na cidade, aproveitando o sono tardio do sentinela.

18.8.21

Partir (a) pedra (short stories #354)

Conjunto!Evite, “Quebra Ossos”, in https://www.youtube.com/watch?v=AqoE4eXF0gs

          O mar era o lugar namorado. Até lá, as cordilheiras não amansadas exigiam diligente empreitada. Era preciso superá-las, deixando-as no sítio sem as abjurar como inimigas. Eram, quando muito, um embaraço que o separava do lugar namorado. Tinha a certeza que não seria um logro, apuradas as limalhas sobrantes entre as mãos como retrato vivo dos contratempos derrotados. No fundo, era como um alpinista: o metódico desarmadilhar do chão que seria passagem, para não ser um campo minado. Não podia esquecer o arnês. Nem as luvas que albergam as mãos, protegendo-as dos elementos exteriores que não hesitariam em ser lanças aguçadas para as ferir. À medida das cordilheiras, a sua travessia perfilava um partir pedra. Ao chegar ao porto de destino, a maresia perguntar-lhe-á pelos despojos de toda essa pedra cinzelada. Dirá que o mar tem de confiar nele, da mesma maneira que ele confiou que o mar estaria à sua espera. Partir a pedra não terá sido em vão. Se a maresia sussurrar a insistência, dirá que não podia arcar com tanta pedra arqueada sobre o dorso; nessas condições, seria derrotado pela pedra que partira, o que ditaria um efeito paradoxal. A maresia tratará de levar a mensagem ao mar. Que, generoso, acolherá o peregrino que derrotou a cordilheira, sem lhe ferir a voz com o ressentimento próprio de quem é vítima da usura da desconfiança. Nessa altura, decidirá se dedica ao mar a oferenda que aprontou. Depois de tanta pedra partida, as mãos cansadas poderão não transigir com o leve murmúrio da desconfiança. O mar não levará a mal. Nessa altura, o peregrino mergulhará nas águas precisas onde todos são indiferentes. Para o peregrino, tanto faz. Terá cumprido a sua função. Aproveitando o entardecer, deter-se-á na luz desmaiada para deixar o mar submerso no crepúsculo. E sentir-se-á vingado. 

17.8.21

Breviário (short stories #353)

Ólafur Arnalds, “Zero”, in https://www.youtube.com/watch?v=3qP6LU_MBhU

          Somos ocupantes de um largo badio e a nossa fração está a um passo da perda. Não há lugares dados nem moradas perenes. Quando a manhã se anuncia, a paisagem é composta por um dia inteiro. Nada mais. Os dias seguintes têm de ficar à espera de vez. Em vez do adiamento, a recompensa limita-se às fronteiras desse dia. Do dia de cada vez. Não se participa num tempo ausente. Não se existe por dentro do tempo ausente (salvo o que do pretérito trazemos como património). Não interessa escolher as palavras a dedo, como se fosse imperativo sopesá-las para não se correr o risco do erro. O erro também é património do que nos foi empossado. Os puristas, reféns das suas ilusões, protestam: o erro liquida-se no rosto da angústia que cobre o seu autor. Os puristas vão ao engano. A sua própria designação (que não contestam) é um logro. E nem o tirocínio do erro é matéria-prima capaz para precaver outros erros que terão o devido tempo. Deixem-nos ser a imperfeição que gravita na nossa órbita. Não se trata de uma fragilidade, por ser tão inata à nossa condição. Combater o erro é o pressentimento da angústia. E a angústia (muito embora seja ingrediente da paleta de sentimentos, inconjurável) é um bastão que se intromete entre nós o dia que se desfaz. Na maratona que percorremos, a errância não é uma voz banal. Como outras fragilidades perduráveis, é a prova de que os puristas são a sua pior mentira. A vida é um ciclo frágil. Temporário. Um ciclo que se fecha sobre si mesmo, na confirmação da fina camada de tempo de que somos portadores. O suor esvai-se na finitude do corpo. É a nossa limitada latitude, um atlas que se congemina com os dedos artesãos que compõem um dia. Um dia de cada vez.

16.8.21

A máquina de fazer futuro (short stories #352)

Jungle, “Keep Moving”, in https://www.youtube.com/watch?v=7-lWzQd_xeQ

          Sentado no parapeito da maré, as mãos cruas à espera de sentido. As ordens não se misturam com o aroma que é o fermento da manhã. E, todavia, há quem espere até que o tempo se esgote por si mesmo, preso à letargia. Pensava: há de haver um modo de temperar o futuro. (Sabia que o futuro tem tanto de irrenunciável como de indomável.) Há de haver uma máquina que fazer futuro. Documentou-se. Não foram respostas o que perfumou as mãos. Todos os compêndios listavam razões várias para ter o futuro como uma incógnita exterior à vontade. Não desistiu: o futuro não é o sangue que percorre as veias, mas também não será a entidade transcendental a que os compêndios encomendam as almas. Possivelmente haveria um modo de influenciar o futuro. Essa máquina estaria entre as nossas mãos, e não o sabemos. Alquebrados pelo peso estonteante das lições dos compêndios, não éramos capazes de entender o que estava a tão perto. Se não formos nós, o futuro não existe. Por mais que os ensinamentos banais o desmintam, somos fautores de uma quota-parte do futuro. E não é só o nosso futuro que se equaciona. No imenso feixe que se interseta, aparecemos no mapa dos outros, como os outros ocupam um lugar nas imediações do nosso centrípeto lugar. Hoje falamos pelo que poderá ser o ato vindouro. Somos os procuradores de um futuro qualquer. Sem o peso circunstancial das certezas que não rimam com o tempo por haver. A máquina de fazer futuro não alberga uma ciência exata. Nós somos os seus artesãos. Cabe-nos descodificar a densa linguagem em que se desdobra a sua teia de signos. Participamos no futuro antes de ele ter lugar, como seus hermeneutas. Sem a ajuda de oráculos nem o consentimento de presságios.

13.8.21

Sociedade anónima (short stories #351)

Jamie XX (ft. Romy), “Loud Places”, in https://www.youtube.com/watch?v=TP9luRtEqjc

          Quanto de nós se arruma nesta caleidoscópica sociedade anónima? Não queremos a identidade dos outros. É uma sociedade sem rosto aberto, fechada sobre o seu anonimato. Uma hibernação casuística. Todavia, não nos importunamos com o anonimato da sociedade e por sermos seus sócios. Antecipam os que desconfiam da natureza humana: antes assim, que não é preciso sabermos com quem encorpamos a sociedade anónima. Na lógica de quem argumenta que os outros são o inferno, se eles se dessem a conhecer a sociedade passaria a ser um sacrifício. E nós, a menos que fôssemos torturadores de nós mesmos, seríamos os primeiros a pedir a exclusão. Pertencer a uma sociedade anónima responde a duas exigências da modernidade. Uma é a necessidade de pertença (assim nos ensinam desde os bancos da escola, sem que alguém tenha questionado se os instrutores estão certos). A outra corresponde ao princípio da mentira piedosa. A mentira piedosa que transigimos para a nossa própria conduta. A sociedade anónima é o fio condutor que nos habilita na pertença necessária. Sem o direito de alinhavar interrogações ontológicas, para as respostas não aparecerem como um embaraço que nos coloque no limiar da capitulação, quando a hipótese de despertença se coloca na agenda do dia. Não queremos saber quem são os outros. Limitamo-nos a saber que os outros existem. Mas não queremos que venham à colação com nomes próprios e vidas próprias. Preferimos que a sociedade seja anónima como pretexto da piedosa mentira que nos autoimpomos. Este é, possivelmente, o mandamento maior da desconfiança em que se alinhava a espécie. O cimento da pertença é o outro, sem o qual a nossa existência perde significado. Mas não queremos saber quem são os outros que se coligam connosco numa sociedade forçosamente anónima. Para não termos que alcançar o tear do arrependimento.

12.8.21

Ministério das catástrofes (short stories #350)

P. J. Harvey, “The Ministry of Social Affairs” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=LM6fLNKsxw4

          Num país existe o ministério das catástrofes. Os apóstolos dos lugares-comuns estarão de dedo em riste, preparados para o presságio fácil: trata-se de um lugar tão vulnerável a catástrofes que até precisa de ter um ministério das catástrofes; só pode ser um país pobre e com deficientes instituições políticas (pois que país que se diga desenvolvido precisa de um ministério para cuidar das feridas abertas por uma catástrofe?). Outros apóstolos dos cuidados da semântica virar-se-ão para a designação do ministério, pois um ministério das catástrofes cuida das catástrofes, não das suas consequências (ou chamar-se-ia ministério da superação de catástrofes). Todos estes meirinhos que destilam superioridade moral laboram no equívoco. Não é subdesenvolvido o lugar que acautela as consequências das catástrofes através de um ministério que existe para o efeito. É um lugar que está permanentemente à espera de uma catástrofe. Não precisa de planos de contingência, ou de trabalhar em cima do joelho, como nos países onde não existe o ministério das catástrofes. É um lugar que acautela a elevada probabilidade de catástrofes, mesmo que a matemática mostre o contrário. Aos puristas da língua, ofendidos com o putativo atentado semântico que é a denominação do ministério das catástrofes, contraponha-se: nos lugares que ostentam riqueza existe um ministério do ambiente, e o que está em causa é evitar a sua degradação. Tal como o ministério das catástrofes, o ministério do ambiente cuida das cicatrizes e previne a erupção de futuras feridas. O lugar onde existe o ministério das catástrofes é uma lição de ciência política. Os países que se orgulham de serem um farol na organização das instituições deviam aprender com o país onde existe o ministério das catástrofes. Pois não se acredita que nesses países não exista probabilidade de catástrofes. (Ou preferem tratá-las em cima do joelho?)

11.8.21

O crime não compensa e outras historíolas

Sault, “Masterpiece”, in https://www.youtube.com/watch?v=p7CDZTptL1Y

Combien de crimes ont été commis

(…) combien sont là à cause de la folie.

The Stranglers, La Folie.

         São os pensadores de leis, os arquitetos da sociedade funcional, que proclamam a inutilidade do crime. Devem convencer cada átomo da sociedade que o crime não compensa, para não serem os primeiros a não cumprir a promessa da sociedade harmoniosa. 

Conseguem cumprir a promessa? Conseguem garantir que cada membro do grupo não é um delinquente em potência, ou até um delinquente em nome próprio? Alguém jura pela ausência de crime só porque se anuncia, em pomposa declaração de moralidade, que não compensa cometer um crime? Quantas vezes terão sido cometidos crimes que passaram em branco? Crimes, dos mais graves aos mais comezinhos. Quantas vezes? 

Nem uma vigilância milimétrica sobre os passos de cada pessoa poderia garantir que, pelo menos, a ideia do crime não passe pela cabeça de alguém. E por mais apertado que seja o cerco e todos os nossos passos e decisões estejam à mercê da vigilância tecnologicamente metódica, não há sistemas à prova de fragilidades. A menção ao pessimismo antropológico legitima a propensão para a desobediência aos cânones da sociedade harmoniosa. 

Há sempre quem queira ser rufia por calcular que lhe traz vantagens, as vantagens que se obtêm sem o crivo da exigência que é necessária para as obter. Há caminhos mais fáceis que são atalhos sedutores. O limite da legalidade é ultrapassado sem grande dificuldade. E por mais que se enraíze a prática, maior será o número de pessoas a sucumbir ao charme dos atalhos que são o território minado da lei (e da sociedade em harmonia). 

A lógica do crime que não compensa pode não ser apenas uma historíola para manter as aparências. É um véu, com o selo do poder, para que o fingimento se sobreponha às dores de parto da realidade.

10.8.21

Os tempos estão difíceis para os sonhadores (short stories #349)

Keep Shelley in Athens, “Our Own Dream” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=b6CvhlLUCuA

          O chão foi tomado por uma peçonhenta matéria que oblitera os sonhos. Todos, sonhadores ou não, são obrigados a andar com os pés nesse chão. O embaraço que trava a marcha dos sonhos é uma ampla cordilheira onde se castra a imaginação. Tudo se passa como se o sono fosse um tempo sem tempo, um labirinto desapossado de espaço, apenas uma ponte que liga dois tempos diferentes. Para os sonhadores é particularmente penoso. Estão habituados a uma clepsidra que bebe em águas propícias enquanto se demoram no sono e o sono é colonizado por sonhos de que não têm as rédeas. Eles sempre atestaram: “não queremos ter rédeas nos sonhos que nos habitam.” Quiseram ser a matéria volúvel que se condiciona aos sonhos avulsos. Nunca quiseram ser exegetas dos sonhos. Sempre se entregaram de modo descomprometido aos sonhos e deixaram-se fluir enquanto os sonhos teciam palcos sob os seus pés. Agora, é como se tudo fosse uma imensa terra queimada onde os sonhos não conseguem prosperar. É como se o chão tivesse levado uma vacina contra os sonhos e estes tivessem sido banidos do vocabulário. As peias que se congeminam devem-se ao endurecimento do que se convencionou chamar realidade. A realidade que está à mostra. Por mais que sejam percorridas distâncias dignas de um atlas, é como se os corpos não chegassem a sair do mesmo sítio. Esta é a geografia dos tempos que baniram os sonhos dos horizontes involuntários das pessoas. O que parece paradoxal. Os sonhos sempre tiveram máxima liberdade. Eram autónomos de qualquer vontade, sobrepondo-se às vontades, até às que os contrariavam em juras afiveladas. Agora houve uma vontade, uma vontade sem rosto e sem fala, que sangrou os sonhos. Não é de estranhar a melancolia dos sonhadores.

9.8.21

Tudo se ordena nos bastidores (short stories #348)

Unknown Mortal Orchestra, “That Life”, in https://www.youtube.com/watch?v=UJXccBGs_IY

          Não esgrimam a utopia da transparência. Não digam que tudo se trata às claras sem serem intérpretes de uma farsa. A simetria é um logro. Uma palavra que se esgota no vazio ao ser pronunciada, mero conceito que enche os manuais por que se regem os intendentes e se instruem os súbditos. O objeto mais valioso é o biombo. Há sempre um biombo a embaciar o palco onde aparentemente as coisas que importa têm o seu curso. Não é sem fundamento que se adverte que a informação é dos bens mais preciosos. E se a informação devesse obediência à igualdade, ela deixava de ser a moeda forte que é. Seria o decesso dos oportunistas. Os pequenos e grandes oportunistas que escondem a informação e a guardam para dela obterem um ganho de causa que não é acessível ao comum dos mortais. Atrás dos biombos orquestram-se os bastidores onde se opera a diálise dos interesses. É uma opereta com direito de admissão reservado. As vantagens acumulam-se com a posição privilegiada à partida. Os que estão fora do círculo contentam-se com as migalhas deixadas de fora, num arremedo de generosidade que é outro capítulo da farsa instituída. É como se houvesse um mapa escondido, em segredo, e só uns quantos, com acesso à palavra-chave, pudessem usá-lo para se moverem entre os corredores onde são distribuídas as prebendas. Sejam sinecuras, sejam vantagens materiais, seja o exercício de um poder em pose ostensiva. Deviam deixar cair a máscara das assembleias onde – apregoa-se – se exerce a representação dos cidadãos. Esses não são os palcos principais. São os palcos condicionados pelo que se orquestrou atrás dos biombos, nos bastidores de acesso restrito. Ficariam à mostra os bastidores como cenáculo de um punhado de privilegiados. E a farsa da democracia.

6.8.21

Sem açaime (short stories #347)

Luta Livre, “Pedigree” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=tozIrflyWCs

          Não eram os segredos que arrancavam as diligências da inércia. Tu eras a tua própria raça e não precisavas de demonstrar pergaminhos. Em todo o caso, o açaime que sobre a tua boca se abatia era revelador. Se não fosses feroz não usavas açaime. Em tua defesa, a convicção inabalável do profícuo pacifismo. Dizias: nunca mordi em ninguém. Talvez não fosses o melhor hermeneuta das palavras que da tua boca descaíam – ou então, não dominavas a semântica e não conseguias alcançar a cal dessas palavras. Alegar, em teu favor, que nunca tinhas mordido em ninguém equivalia a reconhecer que já morderas em alguém. Talvez por isso usasses açaime – insistiam as vozes em surdina à tua volta. Não te importavas. Podia ser que a memória fosse seletiva. Ela é tão seletiva em tanta gente, a começar pelos mitómanos que a decantam sob o comando das conveniências. Porventura não perdias nada em assumir a tua condição. A condição de ferocidade. Ao menos, impunhas respeito com uma causa subjacente. Tu próprio terias noção do medo que infundes nas pessoas que aparecem no caminho. Haverias de te soltar do açaime para fazer jus a essa condição. O legítimo pergaminho não se pode vergar às aparências que atuam como indulgência. Não precisas de desculpas, ou de pretextos, ou de mentiras para te esconderes dos outros e, a começar, de ti próprio. Deixa cair o açaime, mesmo que te digam que só os outros o podem desembainhar. Contraria-os. Prova a liberdade em que te engrandeces. Prova-a e deleita-te. Deixa cair o açaime e passeia em liberdade, com o garbo dos que participam nessa liberdade como seus autênticos autores. Não te satisfaças como mero ator dessa liberdade. Só serás autor se conseguires remover o açaime. Para deixares que a boca entoe as palavras a preceito. 

5.8.21

Fast forward (short stories #346)

Ty Segall, “Harmonizer”, in https://www.youtube.com/watch?v=Btw0ICFl4xE

         Teria culpa no emagrecer do tempo, se a tirania do relógio se impunha e o olhar repetidas vezes descia ao relógio. Às vezes, era como se fizesse o tempo multiplicar-se por dez e ele andasse ainda mais depressa. Era assim com as memórias embutidas. A mnemónica do passado era assustadora: recuava até a um determinado instante e fazia a contagem do tempo entretanto havido para medir o tanto tempo que passara a ser menção da História. De repente, essa medida do tempo anestesiava-se no número exorbitante. Todo esse tempo havido parecia não quadrar com a sua dimensão. Ele voara, desmentindo a câmara lenta que só acontece quando nos exasperamos contra o tempo. O tempo ciciava como uma fratura exposta, exibida a destempo. Ao menos que o tempo restante não fosse tão imprudente. Ou melhor: que não fosse refém da negligência até sentir que a experiência pretérita se repetia quando o tempo se renovasse. Tinha de abrandar a lente que decanta o mundo. A velocidade estonteante tinha de ser travada. Não podia tolerar este excesso de velocidade, que não revertia a favor de uma vida transbordante. A pele despoja-se das cicatrizes para se entregar limpa ao tempo por haver. Essa capacidade é a intuição de como deve ser ordenado o tempo. Todas as formas de hibernação devem ser terminantemente recusadas. Elas representam o engaiolar do tempo sem que ele deixe de ter o seu curso. Ao consentir a vertiginosa aceleração do tempo ele foge entre os dedos, vertendo a angústia sobre o corpo desprotegido. Não podemos deixar aos outros a procuração do nosso tempo, porque não podemos contar com a sua indulgência. O tempo tem de passar a ser considerado um recurso em vias de extinção para se exigir a parcimónia no seu uso. Devíamos ser todos ambientalistas do nosso próprio tempo. 

4.8.21

Uma seleção de húngaros (short stories #345)

Nitin Sawhney, “Say Hello”, in https://www.youtube.com/watch?v=It3LerIUKXE

          Disse que o foie gras foi inventado em França. Foi quando descobriu duas coisas: que o interlocutor era húngaro e que o foie gras, contra todas as expetativas e o conhecimento vulgarizado, foi inventado na Hungria. Os outros também eram húngaros. Não esperava que levantassem as canecas de cerveja em sinal de brio pátrio: parecia que pertenciam a um grupo de pessoas que não são apreciados pelo governo do país. Mas reagiram ligeiramente ofendidos, confirmando que o património de um país deve ser reclamado pelos seus patrícios quando a ignorância o endereça ao país errado. E confirmando que a ostentação das medalhas pátrias não depende de os orgulhosos serem perseguidos pelo governo. A identidade sobrepõe-se ao governo do momento. O último é conjuntural. A identidade é um traço de continuidade que não se apaga quando a conjuntura não é favorável a quem exalta a identidade nacional. Um dos húngaros, ao corrigir o erro de antropologia gastronómica, acrescentou: “não somos a casa mãe do goulash, apenas.” Ato contínuo, desafiou os húngaros a acompanhá-lo a outro estabelecimento comercial. Pagou a despesa, para dissipar a resistência dos húngaros, que não gostam de desperdiçar cerveja. Um pouco acima na rua havia uma confeitaria afamada. Pediu um quarto de húngaros e distribuiu-os pelos húngaros. “Sabem o nome destes biscoitos?” Os húngaros apreciavam os húngaros sem saberem que estavam a comer húngaros. Perante o silêncio dos húngaros, respondeu à sua própria pergunta: “húngaros. Estes biscoitos chamam-se húngaros”. Os húngaros suspenderam imediatamente o deleite. Talvez tenha pesado, no seu subconsciente, a armadilha da antropofagia. Não se sentiam à vontade por serem húngaros a comer húngaros. Passada a surpresa, os húngaros continuaram a apreciar os húngaros. Um deles comentou, em duplo deleite: “se o nosso primeiro-ministro vier ao teu país, dar-lhe a comer húngaros vai causar um incidente diplomático.”

3.8.21

Quem gosta de ser (considerado) veterano? (short stories #344)

Cocteau Twins, “Tishbite” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=13fVAP4LdVU

         O aroma da experiência adeja como voz de comando; a experiência é um recurso que não se pode delapidar. O cálculo da experiência poupa a digressão no desconhecido. Ultrapassa os imponderáveis da verdura que transita com os mais novos, enquanto não superam a imberbe condição. Se fosse sempre assim, os novos nunca podiam deixar de ser novos – ou sê-lo-iam durante um longo tirocínio, até que as poucas oportunidades fossem o capital angariado para a experiência ser reconhecida. Nessa altura, ganharam experiência e perderam exuberância. Não é fácil lidar com o compromisso entre os dois ingredientes que se desenlaçam um do outro. A juventude está cheia de potencial. Mas as oportunidades não chegam aos jovens. Quando se deixa de ser jovem e uma camada de experiência é reconhecida, os trunfos de outrora foram sendo assimilados pelo tempo e não passam de uma sombra opaca. Mais tarde, a experiência esgota-se na senescência, quando esta é ditada pelas convenções da época. Um veterano passa a ser uma relíquia. Respeitado pelo que soube legar no passado, entrou na decadência. Serve de exemplo, sem ser admitido à coutada dos que se mantêm ativos. É uma honraria que se reduz a nada. Um repositório de memórias que serve para alimentar um estatuto simbólico. Quando a experiência dos veteranos é invocada, ela não tem serventia para os propósitos do presente. Pois o tempo que passou até terem chegado à veterania tornou-os obsoletos. Alguns veteranos têm a noção que a deferência é simbólica. Aceitam o tempo que se construiu. Aprenderam a conviver com o estertor, que não tarda. Outros, viciados num Narciso estrutural, alimentam as saudades da glória de que foram intérpretes. Ainda não aprenderam que o tempo já não lhes pertence. Para eles, a veterania é uma armadilha.

2.8.21

Os homens grandes também choram


 In Público, 30.07.21, p. 36

Diz-se que até as árvores de grande porte se abatem, porque o tempo, incomensurável na sua finitude, também lhes dita um prazo de validade. Ninguém se importuna com as lágrimas dessas (e das outras) árvores. São lágrimas invisíveis. Só as lágrimas que estão à mostra é que podem apoquentar quem as vê.

Um homem de grande porte também verte as suas lágrimas. É a confirmação de um quase lugar-comum. Não são apenas os homens que também choram. Mesmo os homens grandes e fortes não sabem como reprimir uma lágrima, que nem é furtiva (se se atender ao caudal generoso que foi fazendo o seu caminho pelo rosto abaixo).

Dizer que os homens não choram é uma farsa que já foi desmentida há tempo largo. Faltava participar o adágio no caso dos homens grandes e fortes. Nem a sua força exterior consegue dominar a força interior que se mobiliza a favor das lágrimas. Impressionamo-nos mais com as lágrimas vertidas por um homem grande e forte? Não nos devíamos impressionar com as lágrimas vertidas por vivalma. As lágrimas não são uma equação da musculatura abundante. E porque todos vertemos lágrimas e devemos dispensar a comiseração alheia quando interpretamos um pranto. Quando choramos, não é para cativar a piedade dos outros.

As lágrimas derramadas por um homem grande e forte podem causar espécie se provierem de um atleta que alcançou uma proeza desportiva. Os jogos olímpicos têm este mau condão: os concorrentes jogam uns contra e os outros e jogam grande parte da sua carreira (logo, da sua vida) num acontecimento que os efemeriza. Se não conseguem chegar ao feito a que se propunham, lamentam-se, quase que se auto-mutilam. Pedem desculpa ao país, como se o país não pensasse noutra coisa se não na participação dos desportistas – como se os desportistas, pese embora representem formalmente um país, não compitam por si e para si mesmos. Outros não se contentam com o lugar alcançado, mesmo quando ele é uma proeza para muitos praticantes da modalidade. 

O homem grande e forte que trouxe uma medalha de bronze para casa exortou a façanha maior, prometendo-a para as olimpíadas que vierem a seguir. Porque ele é bicampeão do mundo e uma medalha de bronze não é o seu lugar. Isso chega para derramar uma lágrima, ou é a pressão dos jogos que humaniza os desportistas?