O chão foi tomado por uma peçonhenta matéria que oblitera os sonhos. Todos, sonhadores ou não, são obrigados a andar com os pés nesse chão. O embaraço que trava a marcha dos sonhos é uma ampla cordilheira onde se castra a imaginação. Tudo se passa como se o sono fosse um tempo sem tempo, um labirinto desapossado de espaço, apenas uma ponte que liga dois tempos diferentes. Para os sonhadores é particularmente penoso. Estão habituados a uma clepsidra que bebe em águas propícias enquanto se demoram no sono e o sono é colonizado por sonhos de que não têm as rédeas. Eles sempre atestaram: “não queremos ter rédeas nos sonhos que nos habitam.” Quiseram ser a matéria volúvel que se condiciona aos sonhos avulsos. Nunca quiseram ser exegetas dos sonhos. Sempre se entregaram de modo descomprometido aos sonhos e deixaram-se fluir enquanto os sonhos teciam palcos sob os seus pés. Agora, é como se tudo fosse uma imensa terra queimada onde os sonhos não conseguem prosperar. É como se o chão tivesse levado uma vacina contra os sonhos e estes tivessem sido banidos do vocabulário. As peias que se congeminam devem-se ao endurecimento do que se convencionou chamar realidade. A realidade que está à mostra. Por mais que sejam percorridas distâncias dignas de um atlas, é como se os corpos não chegassem a sair do mesmo sítio. Esta é a geografia dos tempos que baniram os sonhos dos horizontes involuntários das pessoas. O que parece paradoxal. Os sonhos sempre tiveram máxima liberdade. Eram autónomos de qualquer vontade, sobrepondo-se às vontades, até às que os contrariavam em juras afiveladas. Agora houve uma vontade, uma vontade sem rosto e sem fala, que sangrou os sonhos. Não é de estranhar a melancolia dos sonhadores.
10.8.21
Os tempos estão difíceis para os sonhadores (short stories #349)
Keep Shelley in Athens, “Our Own Dream” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=b6CvhlLUCuA
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