17.8.21

Breviário (short stories #353)

Ólafur Arnalds, “Zero”, in https://www.youtube.com/watch?v=3qP6LU_MBhU

          Somos ocupantes de um largo badio e a nossa fração está a um passo da perda. Não há lugares dados nem moradas perenes. Quando a manhã se anuncia, a paisagem é composta por um dia inteiro. Nada mais. Os dias seguintes têm de ficar à espera de vez. Em vez do adiamento, a recompensa limita-se às fronteiras desse dia. Do dia de cada vez. Não se participa num tempo ausente. Não se existe por dentro do tempo ausente (salvo o que do pretérito trazemos como património). Não interessa escolher as palavras a dedo, como se fosse imperativo sopesá-las para não se correr o risco do erro. O erro também é património do que nos foi empossado. Os puristas, reféns das suas ilusões, protestam: o erro liquida-se no rosto da angústia que cobre o seu autor. Os puristas vão ao engano. A sua própria designação (que não contestam) é um logro. E nem o tirocínio do erro é matéria-prima capaz para precaver outros erros que terão o devido tempo. Deixem-nos ser a imperfeição que gravita na nossa órbita. Não se trata de uma fragilidade, por ser tão inata à nossa condição. Combater o erro é o pressentimento da angústia. E a angústia (muito embora seja ingrediente da paleta de sentimentos, inconjurável) é um bastão que se intromete entre nós o dia que se desfaz. Na maratona que percorremos, a errância não é uma voz banal. Como outras fragilidades perduráveis, é a prova de que os puristas são a sua pior mentira. A vida é um ciclo frágil. Temporário. Um ciclo que se fecha sobre si mesmo, na confirmação da fina camada de tempo de que somos portadores. O suor esvai-se na finitude do corpo. É a nossa limitada latitude, um atlas que se congemina com os dedos artesãos que compõem um dia. Um dia de cada vez.

Sem comentários: