13.8.21

Sociedade anónima (short stories #351)

Jamie XX (ft. Romy), “Loud Places”, in https://www.youtube.com/watch?v=TP9luRtEqjc

          Quanto de nós se arruma nesta caleidoscópica sociedade anónima? Não queremos a identidade dos outros. É uma sociedade sem rosto aberto, fechada sobre o seu anonimato. Uma hibernação casuística. Todavia, não nos importunamos com o anonimato da sociedade e por sermos seus sócios. Antecipam os que desconfiam da natureza humana: antes assim, que não é preciso sabermos com quem encorpamos a sociedade anónima. Na lógica de quem argumenta que os outros são o inferno, se eles se dessem a conhecer a sociedade passaria a ser um sacrifício. E nós, a menos que fôssemos torturadores de nós mesmos, seríamos os primeiros a pedir a exclusão. Pertencer a uma sociedade anónima responde a duas exigências da modernidade. Uma é a necessidade de pertença (assim nos ensinam desde os bancos da escola, sem que alguém tenha questionado se os instrutores estão certos). A outra corresponde ao princípio da mentira piedosa. A mentira piedosa que transigimos para a nossa própria conduta. A sociedade anónima é o fio condutor que nos habilita na pertença necessária. Sem o direito de alinhavar interrogações ontológicas, para as respostas não aparecerem como um embaraço que nos coloque no limiar da capitulação, quando a hipótese de despertença se coloca na agenda do dia. Não queremos saber quem são os outros. Limitamo-nos a saber que os outros existem. Mas não queremos que venham à colação com nomes próprios e vidas próprias. Preferimos que a sociedade seja anónima como pretexto da piedosa mentira que nos autoimpomos. Este é, possivelmente, o mandamento maior da desconfiança em que se alinhava a espécie. O cimento da pertença é o outro, sem o qual a nossa existência perde significado. Mas não queremos saber quem são os outros que se coligam connosco numa sociedade forçosamente anónima. Para não termos que alcançar o tear do arrependimento.

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