30.8.21

A metáfora do pesadelo

New Order, “Dreams Never End”, in https://www.youtube.com/watch?v=78To_JhbmT0

A nudez no meio da rua. Sem saber: como aconteceu a nudez e em que rua estava. As outras pessoas, indiferentes, acalmando o tonitruante pesadelo. O receio de ser descoberto prolonga a estadia na rua em crua nudez. Prolonga o pesadelo. Fala-se de fuga pelas ruas estreitas da cidade, escolhidas a dedo para quadrar com a ausência de transeuntes. Falo, mas não sei com quem.

Uma ponte atravessada por muita gente (até por turistas). A meio da ponte, um cataclismo: a ponte estreita-se e passa a ser um fino corredor metálico onde as pessoas têm de fazer de trapezistas. Algumas caem mal ensaiam a sua intrepidez. Os corpos volatilizam-se na queda. Não são engolidos pelo rio. (O rio não quer dores de consciência, como se tivesse culpa do desabamento da ponte, como se tivesse culpa da intrepidez – e do demencial avanço para o qual não estão preparadas – das pessoas.)

A voz emudece, quando mais dela precisava. Uma audiência espera pelas palavras prometidas. Mas a voz emudecida toma conta do tempo. O corpo trespassado de medo não chega a sentir o medo. Dir-se-ia que hibernou num remoto labirinto que aprisiona a fala. A pateada ecoa na audiência. O medo retesado grita através do avesso das veias. Um grito de dor sobe à garganta, está preparado para revelar como é lancinante a angústia que atravessa o sangue. Não consegue. A voz mantém-se muda, enquanto o palco é retirado sob os pés e caio a pique no abismo.

Há pessoas que encarnam personagens fantasmagóricas e poluem os sonhos (transfigurando-os em pesadelos). Não são convidadas para o pesadelo. Os pesadelos entronizam-se num promontório onde a vontade é indiferente. É como se os pesadelos fossem a metáfora da vida: quase tudo está fora da vontade, à mercê de um teatro onde se jogam, aleatórias, as circunstâncias avulsas.

Um lugar nunca dantes visitado. Um idioma ininteligível. Ninguém fala a língua franca. Não é possível comunicar, a não ser pela linguagem tosca dos gestos moratórios. As pessoas apresentam os seus rostos seráficos, insensíveis. É como se estivesse naquele lugar e ninguém me visse. Abro o mapa. O lugar não está cadastrado. Vejo a nudez com a mediação da vidraça na estação de comboios. Não me sobressalta. Os corpos estão todos nus. Sem surpresa. Nascemos todos nus.

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