19.8.21

Sentinela (short stories #355)

Orelha Negra ft. A Garota Não, “Ready (Mulher Batida)”, in https://www.youtube.com/watch?v=2fF0NTUIqyY

          Perfuma-se o caudal com as sementes do sabugueiro colhidas no Outono. Atira-se um pouco do Outono para o meio do Verão, como sua temperança. Não se diga que nesta cidade o estio não é moderado. Há manhãs que nascem sob os auspícios do nevoeiro maciço. Por vezes, o dia prolonga-se deitado neste sofá de névoa, teimosamente. Noutros lugares, o Verão estigmatiza. Aqui o Outono é o nosso sentinela, os que não admitimos a concurso um Verão que é uma febre no corpo. Passeamos na orla da neblina que transbordou a geografia e tomou conta da cidade, embaciando o calendário que é uma súplica de Verão. Pelo menos, para os que, contristados, se amotinam contra o sentinela outonal que persiste, desmentindo o calendário. A menos que este lugar seja uma exceção e seja o exílio do Verão. Se não é pelo persistente nevoeiro que entristece os veraneantes, é pela nortada que desarruma tudo enquanto vocifera. Incluindo os corpos que mal pressentem o sol se atravessam nos lugares junto ao mar. Há quem pergunte se a intermediação do Outono foi requisitada por alguém. Ninguém se inculpa. Pois é de culpa que se trata, ao sentir-se em surdina um protesto não disfarçado contra o Verão acanhado. Os deuses que tutelam o tempo não dão ouvidos ao clamor, e há quem insinue que os deuses têm razão para castigar os veraneantes da cidade que tinham ambições de um Verão parecido como o dos outros lugares. Não se discutem estas coisas, guardadas para o magma onde fervilha o gatilho do clamor adiado. Pelo caminho, a geografia não muda de lugar. A combinação dos deuses manter-se-á, sentinela de todos os que exsudam ira de cada vez que, por engano, a canícula aldraba os deuses do nevoeiro e se abate na cidade, aproveitando o sono tardio do sentinela.

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