Diziam: os olhos estão fechados, ela não consegue ouvir. Contrapunham: se a manhã não estivesse chuvosa, havia menos gente a sobrepovoar as lojas. Talvez não fosse relevante: o chamamento dos prazeres gastronómicos levou-os a indagar onde poderiam amesendar condignamente. Nada que importunasse os outros: em vez do teatro, haveriam de ir ao cinema (essa foi uma das resoluções do dia). Os primeiros não davam o flanco: era preciso discutir a crise de egos que chocavam de frente e poluíam o ambiente na empresa (um dilema verdadeiramente existencial, se se desse o caso de terem vida fora do trabalho). Matéria que não sobressaltava os outros: o capitalismo é a fonte de todos os males, aquela discussão (estéril) confirmava-o. Pudessem os primeiros ecoar outras dores e uma certa propensão para a hipocondria daria à superfície. Era o poder demiúrgico da paisagem rural que encantava os outros: reféns de uma contradição (quem o não é?), endossavam para um deus qualquer o sortilégio que enfeitava o olhar. Os primeiros consideram-se mais terra a terra: a terra é uma matéria-prima, não se deifica. Muito embora estes sejam os que acreditam em deus. Até as horas habitavam em marés contrárias. Uns celebravam a alvorada, os outros arrastavam os corpos para o núcleo da noite e era aí que se reificavam. Um dia houve em que convergiram em lugar neutro. Disfarçaram a indiferença uns dos outros. Só falam entre si, não para os outros. Houvesse um observador imparcial e da sua arbitragem ficaria registado um diálogo de surdos. A dissemelhança tutelava a impossibilidade de diálogo. Conversavam entre si e, dentro de cada grupo, fingiam que não ouviam as conversas limítrofes dos outros. Não queriam ouvir os outros. Afinal, os feudos não são um atavismo que recorda a Idade Média. O diálogo de surdos é o medievalismo revivido.
24.8.21
Conversa de surdos (short stories #358)
Gorillaz ft. Robert Smith, “Strange Timez” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=sgs0snFlHs8
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário