Não eram os segredos que arrancavam as diligências da inércia. Tu eras a tua própria raça e não precisavas de demonstrar pergaminhos. Em todo o caso, o açaime que sobre a tua boca se abatia era revelador. Se não fosses feroz não usavas açaime. Em tua defesa, a convicção inabalável do profícuo pacifismo. Dizias: nunca mordi em ninguém. Talvez não fosses o melhor hermeneuta das palavras que da tua boca descaíam – ou então, não dominavas a semântica e não conseguias alcançar a cal dessas palavras. Alegar, em teu favor, que nunca tinhas mordido em ninguém equivalia a reconhecer que já morderas em alguém. Talvez por isso usasses açaime – insistiam as vozes em surdina à tua volta. Não te importavas. Podia ser que a memória fosse seletiva. Ela é tão seletiva em tanta gente, a começar pelos mitómanos que a decantam sob o comando das conveniências. Porventura não perdias nada em assumir a tua condição. A condição de ferocidade. Ao menos, impunhas respeito com uma causa subjacente. Tu próprio terias noção do medo que infundes nas pessoas que aparecem no caminho. Haverias de te soltar do açaime para fazer jus a essa condição. O legítimo pergaminho não se pode vergar às aparências que atuam como indulgência. Não precisas de desculpas, ou de pretextos, ou de mentiras para te esconderes dos outros e, a começar, de ti próprio. Deixa cair o açaime, mesmo que te digam que só os outros o podem desembainhar. Contraria-os. Prova a liberdade em que te engrandeces. Prova-a e deleita-te. Deixa cair o açaime e passeia em liberdade, com o garbo dos que participam nessa liberdade como seus autênticos autores. Não te satisfaças como mero ator dessa liberdade. Só serás autor se conseguires remover o açaime. Para deixares que a boca entoe as palavras a preceito.
6.8.21
Sem açaime (short stories #347)
Luta Livre, “Pedigree” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=tozIrflyWCs
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