18.8.21

Partir (a) pedra (short stories #354)

Conjunto!Evite, “Quebra Ossos”, in https://www.youtube.com/watch?v=AqoE4eXF0gs

          O mar era o lugar namorado. Até lá, as cordilheiras não amansadas exigiam diligente empreitada. Era preciso superá-las, deixando-as no sítio sem as abjurar como inimigas. Eram, quando muito, um embaraço que o separava do lugar namorado. Tinha a certeza que não seria um logro, apuradas as limalhas sobrantes entre as mãos como retrato vivo dos contratempos derrotados. No fundo, era como um alpinista: o metódico desarmadilhar do chão que seria passagem, para não ser um campo minado. Não podia esquecer o arnês. Nem as luvas que albergam as mãos, protegendo-as dos elementos exteriores que não hesitariam em ser lanças aguçadas para as ferir. À medida das cordilheiras, a sua travessia perfilava um partir pedra. Ao chegar ao porto de destino, a maresia perguntar-lhe-á pelos despojos de toda essa pedra cinzelada. Dirá que o mar tem de confiar nele, da mesma maneira que ele confiou que o mar estaria à sua espera. Partir a pedra não terá sido em vão. Se a maresia sussurrar a insistência, dirá que não podia arcar com tanta pedra arqueada sobre o dorso; nessas condições, seria derrotado pela pedra que partira, o que ditaria um efeito paradoxal. A maresia tratará de levar a mensagem ao mar. Que, generoso, acolherá o peregrino que derrotou a cordilheira, sem lhe ferir a voz com o ressentimento próprio de quem é vítima da usura da desconfiança. Nessa altura, decidirá se dedica ao mar a oferenda que aprontou. Depois de tanta pedra partida, as mãos cansadas poderão não transigir com o leve murmúrio da desconfiança. O mar não levará a mal. Nessa altura, o peregrino mergulhará nas águas precisas onde todos são indiferentes. Para o peregrino, tanto faz. Terá cumprido a sua função. Aproveitando o entardecer, deter-se-á na luz desmaiada para deixar o mar submerso no crepúsculo. E sentir-se-á vingado. 

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